São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

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Saga de Quixote chega ao fim em edição bilíngüe

Cervantes escreveu a obra para pôr fim à disputa com autor de versão apócrifa

"O Engenhoso Cavaleiro d. Quixote de La Mancha", 2ª parte das aventuras do nobre Alonso Quijano, tem tradução de Sérgio Molina

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Sentado na cama, vestindo uma almilha de baeta verde, com um gorro vermelho de malha, tão magro e amumiado que parecia um peixe seco."
Este é d. Quixote, pouco menos de um mês depois do fim de sua primeira aventura, relatada em "O Engenhoso Fidalgo dom Quixote de La Mancha" (1605), de Miguel de Cervantes.
Agora, o Cavaleiro da Triste Figura está sob a observação de um padre, um barbeiro, a sobrinha e a ama. E a expectativa é: "Será que, finalmente, esse homem vai recuperar o juízo?". É assim que tem início o "Engenhoso Cavaleiro d. Quixote de La Mancha", segunda parte das aventuras do nobre Alonso Quijano, lançado em 1615, dez anos depois da primeira.
O segundo livro dá continuação à saga de Quijano, o fidalgo que, por ler muitos livros de cavalaria, acabou enlouquecendo e saindo pelo mundo em busca de aventuras e de justiça.
A obra acaba de ganhar nova edição bilíngüe no Brasil, na seqüência do trabalho iniciado pela editora 34 em 2002, quando chegou ao mercado a primeira parte. Ambas as traduções são de Sergio Molina.
Apesar de ser menos conhecida do que a primeira parte, nesta segunda estão mais visíveis algumas das razões pelas quais o "Quixote" se tornou uma obra tão essencial.
Aqui, Cervantes manipula personagens reais e universos ficcionais, transformando-os em objetos da discussão literária dentro da própria obra. Ninguém é poupado, nem ele, seu livro e comentários a ambos.
Explique-se. Cervantes não tinha intenção de escrever a segunda parte do "Quixote" até que o sucesso provocou uma enxurrada de obras apócrifas protagonizadas por seu herói.

Vingança
A mais célebre dessas versões foi a escrita por certo Alonso Fernández de Avellaneda. Estudos recentes revelaram a provável identidade desse Avellaneda. Teria sido um soldado que lutou ao lado de Cervantes na Batalha de Lepanto (1571, onde o escritor perdeu a mão). Cervantes teria satirizado o colega no capítulo 22, quando Quixote encontra um grupo de criminosos. Irritado, Avellaneda vingou-se, publicando uma falsa continuação.
"Havia um problema muito sério entre Cervantes e Avellaneda. Nunca saberemos muito bem por quê. O fantástico é que, na tentativa de responder ao inimigo, Cervantes tenha apurado ainda mais sua ironia.
E, ao incluir a própria obra apócrifa dentro do seu texto e discutindo com ela, criou algo realmente novo e muito rico.
Tanto o falso como o real viraram tema literário", diz a professora de literatura da USP Maria Augusta da Costa Vieira.
Em entrevista à Folha a professora adverte, porém, para o fato de que, na Espanha do século 17, autoria e originalidade eram vistas de modo muito diferente. Apropriações de textos alheios e releituras eram corriqueiras. "A disputa autoral entre eles só é tão diferente por conta da disputa pessoal e acirrada que tiveram. Mas, com isso, ganhou a literatura."
Cervantes anuncia o clima de retaliação no prólogo, mordaz a seu estilo: "Esta segunda parte de d. Quixote que te ofereço é cortada do mesmo artífice e do mesmo pano que a primeira, e que nela te dou um d. Quixote dilatado, e finalmente morto e sepultado, por que ninguém se atreva a lhe levantar novos testemunhos, pois bastam os passados, e basta também que um homem honrado tenha dado notícia dessas discretas loucuras, sem querer de novo entrar nelas, pois a fartura das coisas, ainda quando boas, faz com que se não estimem, e a carestia (até das más) se estima algum tanto".
No que diz respeito à trama, há algumas diferenças entre as aventuras que o cavaleiro e seu fiel escudeiro Sancho Pança vivem. Se na primeira predomina a Espanha dos campos desolados e hospedagens, na segunda começam a ganhar importância as cidades. "Era um mundo que se encaminhava para uma vida social mais urbana. Por isso vemos os dois indo a festas, a um casamento, a salões na casa de outros nobres", diz Vieira.
O tradutor levou cinco anos para terminar essa segunda parte do trabalho. A tarefa era tão grande, envolvente e "quixotesca" que, a certa altura, brinca, concluiu que "conceber cronogramas era como acreditar que estalagens são castelos e prostitutas, donzelas".
As vantagens de se ler as versões em espanhol e português juntas são muitas. "O português arcaico é próximo do espanhol. Mesmo o português atual guarda semelhanças curiosas. Há notas de edições do Quixote em espanhol que seriam dispensáveis para leitores brasileiros", diz Vieira.
Molina observa: "O português e o castelhano clássicos, que são os dos textos dos séculos 16 e 17, o período da União Ibérica e do auge do bilingüismo luso-castelhano, guardam grandes semelhanças não apenas no léxico, na sintaxe, no padrão rítmico, mas também nas figuras de linguagem, nas expressões e locuções mais usuais, nos estilos retóricos".
Quanto à dúvida sobre a sanidade de Quixote às beiras da morte, fica para o leitor desvendar. Só vale ressaltar que, em seu curioso testamento, d. Alonso Quijano proíbe que a sobrinha se case com qualquer homem que "saiba o que é" um livro de cavalaria.


O ENGENHOSO CAVALEIRO D. QUIXOTE DE LA MANCHA
Autor:
Miguel de Cervantes
Lançamento: editora 34
Quanto: R$ 84 (856 págs.)


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