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Saga de Quixote chega ao fim em edição bilíngüe
Cervantes escreveu a obra para pôr fim à disputa com autor de versão apócrifa
"O Engenhoso Cavaleiro d. Quixote de La Mancha", 2ª
parte das aventuras do nobre Alonso Quijano, tem
tradução de Sérgio Molina
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Sentado na cama, vestindo
uma almilha de baeta verde,
com um gorro vermelho de malha, tão magro e amumiado que
parecia um peixe seco."
Este é d. Quixote, pouco menos de um mês depois do fim de
sua primeira aventura, relatada
em "O Engenhoso Fidalgo dom
Quixote de La Mancha" (1605),
de Miguel de Cervantes.
Agora, o Cavaleiro da Triste
Figura está sob a observação de
um padre, um barbeiro, a sobrinha e a ama. E a expectativa é:
"Será que, finalmente, esse homem vai recuperar o juízo?".
É assim que tem início o "Engenhoso Cavaleiro d. Quixote
de La Mancha", segunda parte
das aventuras do nobre Alonso
Quijano, lançado em 1615, dez
anos depois da primeira.
O segundo livro dá continuação à saga de Quijano, o fidalgo
que, por ler muitos livros de cavalaria, acabou enlouquecendo
e saindo pelo mundo em busca
de aventuras e de justiça.
A obra acaba de ganhar nova
edição bilíngüe no Brasil, na seqüência do trabalho iniciado
pela editora 34 em 2002, quando chegou ao mercado a primeira parte. Ambas as traduções são de Sergio Molina.
Apesar de ser menos conhecida do que a primeira parte,
nesta segunda estão mais visíveis algumas das razões pelas
quais o "Quixote" se tornou
uma obra tão essencial.
Aqui, Cervantes manipula
personagens reais e universos
ficcionais, transformando-os
em objetos da discussão literária dentro da própria obra. Ninguém é poupado, nem ele, seu
livro e comentários a ambos.
Explique-se. Cervantes não
tinha intenção de escrever a segunda parte do "Quixote" até
que o sucesso provocou uma
enxurrada de obras apócrifas
protagonizadas por seu herói.
Vingança
A mais célebre dessas versões foi a escrita por certo
Alonso Fernández de Avellaneda. Estudos recentes revelaram
a provável identidade desse
Avellaneda. Teria sido um soldado que lutou ao lado de Cervantes na Batalha de Lepanto
(1571, onde o escritor perdeu a
mão). Cervantes teria satirizado o colega no capítulo 22,
quando Quixote encontra um
grupo de criminosos. Irritado,
Avellaneda vingou-se, publicando uma falsa continuação.
"Havia um problema muito
sério entre Cervantes e Avellaneda. Nunca saberemos muito
bem por quê. O fantástico é
que, na tentativa de responder
ao inimigo, Cervantes tenha
apurado ainda mais sua ironia.
E, ao incluir a própria obra apócrifa dentro do seu texto e discutindo com ela, criou algo
realmente novo e muito rico.
Tanto o falso como o real viraram tema literário", diz a professora de literatura da USP
Maria Augusta da Costa Vieira.
Em entrevista à Folha a professora adverte, porém, para o
fato de que, na Espanha do século 17, autoria e originalidade
eram vistas de modo muito diferente. Apropriações de textos
alheios e releituras eram corriqueiras. "A disputa autoral entre eles só é tão diferente por
conta da disputa pessoal e acirrada que tiveram. Mas, com isso, ganhou a literatura."
Cervantes anuncia o clima
de retaliação no prólogo, mordaz a seu estilo: "Esta segunda
parte de d. Quixote que te ofereço é cortada do mesmo artífice e do mesmo pano que a primeira, e que nela te dou um d.
Quixote dilatado, e finalmente
morto e sepultado, por que
ninguém se atreva a lhe levantar novos testemunhos, pois
bastam os passados, e basta
também que um homem honrado tenha dado notícia dessas
discretas loucuras, sem querer
de novo entrar nelas, pois a fartura das coisas, ainda quando
boas, faz com que se não estimem, e a carestia (até das más)
se estima algum tanto".
No que diz respeito à trama,
há algumas diferenças entre as
aventuras que o cavaleiro e seu
fiel escudeiro Sancho Pança vivem. Se na primeira predomina a Espanha dos campos desolados e hospedagens, na segunda começam a ganhar importância as cidades. "Era um
mundo que se encaminhava
para uma vida social mais urbana. Por isso vemos os dois indo a festas, a um casamento, a
salões na casa de outros nobres", diz Vieira.
O tradutor levou cinco anos
para terminar essa segunda
parte do trabalho. A tarefa era
tão grande, envolvente e "quixotesca" que, a certa altura,
brinca, concluiu que "conceber
cronogramas era como acreditar que estalagens são castelos
e prostitutas, donzelas".
As vantagens de se ler as versões em espanhol e português
juntas são muitas. "O português arcaico é próximo do espanhol. Mesmo o português
atual guarda semelhanças curiosas. Há notas de edições do
Quixote em espanhol que seriam dispensáveis para leitores
brasileiros", diz Vieira.
Molina observa: "O português e o castelhano clássicos,
que são os dos textos dos séculos 16 e 17, o período da União
Ibérica e do auge do bilingüismo luso-castelhano, guardam
grandes semelhanças não apenas no léxico, na sintaxe, no padrão rítmico, mas também nas
figuras de linguagem, nas expressões e locuções mais
usuais, nos estilos retóricos".
Quanto à dúvida sobre a sanidade de Quixote às beiras da
morte, fica para o leitor desvendar. Só vale ressaltar que,
em seu curioso testamento, d.
Alonso Quijano proíbe que a
sobrinha se case com qualquer
homem que "saiba o que é" um
livro de cavalaria.
O ENGENHOSO CAVALEIRO D. QUIXOTE DE LA MANCHA
Autor: Miguel de Cervantes
Lançamento: editora 34
Quanto: R$ 84 (856 págs.)
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