São Paulo, terça-feira, 09 de janeiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Autor ganha biografia no Brasil e em Portugal simultaneamente

DA REPORTAGEM LOCAL

A relação da socióloga portuguesa Maria Filomena Mónica com Eça de Queirós começou com uma interdição. Quando era criança, seus pais a proibiram de ler as obras do escritor português, que ficavam nas prateleiras superiores das estantes de sua casa.
Quando tinha 14 anos, ela resolveu fuçar nos volumes proibidos e achou "O Crime do Padre Amaro", o primeiro romance de Eça. Nunca mais largou.
No próximo mês, Mónica vai tornar público o seu "affaire" com o escritor. Ela lança simultaneamente no Brasil (pela editora Record) e em Portugal a esperada biografia "Eça de Queiroz: Vida e Obra" (título não definitivo).
Na entrevista a seguir, feita por e-mail, a socióloga adianta para a Folha alguns aspectos de seu livro e faz previsões sobre a adaptação para a televisão de "Os Maias", que ela descreve sucintamente como "a tragédia de alguém que, um dia, se apaixonou por uma deusa linda, esbelta e inacessível (a irmã que ele desconhecia ter) e que a teve de deixar, como de deixar teve os sonhos de reforma que acalentara para o seu país".
(CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Quais são, na opinião da sra., as teses que vão causar mais polêmica em seu livro sobre Eça de Queirós?
Maria Filomena Mónica -
Duas, em particular. Existe uma tese bem disseminada entre especialistas em Eça de que o fato de ele desconhecer quem são seus pais teria lhe causado traumas profundos. Na ausência de qualquer evidência empírica -uma carta, um indício, uma confissão-, o que o biógrafo honesto deve fazer, no que diz respeito a essas consequências psicológicas da ilegitimidade de Eça, é ser omisso.
Na realidade, ninguém sabe se Eça sofreu ou não com isso. Dado que parte dos papéis pessoais de Eça desapareceu no naufrágio do navio que, após a sua morte, transportava os seus bens, há aspectos da sua personalidade que para sempre serão misteriosos.
Importa ainda dizer que, à época, a taxa de ilegitimidade era, em todas as classes, muito elevada, o que nunca foi tido em conta por quem escreveu sobre Eça.
A segunda tese diz respeito à sua suposta vontade de regressar a Portugal. Ao contrário do que diz a maior parte dos estudiosos, Eça não queria regressar ao seu país. A idéia de que Eça passou os últimos dias da sua vida a suspirar pelo retorno à pátria é um mito divulgado pelo Estado Novo (1934-1974) e que permaneceu.
De fato, o deslumbramento de Eça diante de Paris desaparecera. Mas isso não o fazia desejar Lisboa. Muito menos as serras. A cidade era o seu elemento, e o estrangeiro, o seu refúgio.

Folha - O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony escreveu recentemente em sua coluna na Folha que, "como qualquer outro romancista, Eça nada inventou". O que a sra. diria dessa afirmação? Eça deve mesmo ser tratado como realista?
Mónica -
Depois de olhar atentamente o real, Eça inventou tudo. A "sua" Leiria é uma criação literária, não é uma fotografia. O mesmo se pode dizer dos ambientes, das personagens e do enredo. O que eu defendo no meu livro é que, ao contrário do que por vezes sucede, não se podem usar os romances de Eça como fontes históricas. Quem quiser estudar Portugal em 1870 tem de ler, para além dos romances de Eça, outras fontes. Eça era um romancista, não um antropólogo. Nas suas análises, nomeadamente as que versam sobre a decadência do país, Eça errou. Entre meados de 1870 e meados de 1880, quando, em "Os Maias", ele considera o país "parado", este vivia um dos seus períodos mais dinâmicos.

Folha - Qual o papel que a sra. vê de "Os Maias" na obra de Eça?
Mónica -
"Os Maias" é o testamento pessoal de Eça. Embora ainda vivesse 12 anos depois de ter publicado essa obra, sabia que lhe seria difícil voltar a escrever algo tão genial. Talvez por isso, embora continuasse a escrever, tivesse desistido de publicar.

Folha - Quais a sra. acredita serem as dificuldades de adaptação de "Os Maias" para a televisão?
Mónica -
São as mesmas de toda adaptação de romances. O realizador que adaptar "Os Maias" terá de ser tão bom a filmar quanto Eça a escrever.

Folha - De que modo a sra. trata em seu livro da "ecite" brasileira, da influência que o escritor teve no Brasil? Por que a sra. acredita que o viajante Eça nunca veio ao Brasil?
Mónica -
Suponho que Eça teve o sucesso no Brasil pelas mesmas razões que o teve em Portugal: por ter sido o nosso primeiro escritor moderno. Uma das razões que poderá ter contribuído para que Eça nunca tivesse ido ao Brasil é a de que ele sempre se sentiu fundamentalmente um europeu.
Curiosamente, se não tivesse havido uma interferência pessoal junto do ministro dos Negócios Estrangeiros, no sentido de colocar um "protegido" seu no Brasil, o primeiro posto diplomático de Eça teria sido não Cuba, mas o Recife.


Texto Anterior: TV: "Os Maias" quer dar a Eça ares de cinema
Próximo Texto: Editoras preparam relançamentos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.