São Paulo, sexta-feira, 09 de janeiro de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

Os sais para a náusea


Ele disse que entraria com o dinheiro, mas não queria a mulher que se oferecia, preferia a filha

SE FOSSE o finado Vinicius de Moraes, eu diria que vou contar uma historinha amarga.
Mas não chega a ser uma historinha.
Embora seja bastante amarga. Na realidade, é uma fatia da vida, tal como ela se desenrola por aí, nos cantos impenetráveis do mundo. Deu nos jornais aqui do Rio, talvez tenha chegado até outros pagos, não importa. O personagem é o nosso velho conhecido: o homem. Vou contar o que posso, eliminando detalhes mais escabrosos.
Mulher de 33 anos precisava fazer um aborto. Ela já tinha três filhos: dois com o marido, de quem se separara há muitos anos, e uma garota com o seu novo marido -que a lei e os jornais ainda chamam de "companheiro". Com esse companheiro vive há tempos, é um sujeito simples, aposentou-se da carreira militar com problemas de cuca. É impressionante o número de inválidos mentais que a vida costuma fazer.
Aos 45, 46 anos, ele não podia mais trabalhar. Com uma aposentadoria miserável (menos de R$ 1.000), ficou em casa para sempre, tomando conta dos filhos, da menina que tivera com a mulher e dos dois outros filhos que ele considerava seus enteados.
Com o companheiro impotente, a mulher se virou como pôde e engravidou de outro homem. Ela não podia ou não queria aparecer de barriga cheia, os vizinhos sabiam que o marido não funcionava mais, o jeito era apelar para o aborto. Mas não havia dinheiro.
Então ela foi a uma churrascaria -décor apropriado para esse tipo de transa. Para fazer companhia, levou a filha de apenas sete anos. Na churrascaria, um crooner cantava "Eu sonhei que tu estavas tão linda...". Havia clima. Pegou um cara casado, de quase 50 anos. Mas o cara não queria nada com ela, mulher passada pela vida, ainda por cima grávida. Conversa vai, conversa vem, dinheiro não era problema, o aborto custaria R$ 2.000, o desconhecido disse que entraria com o dinheiro, mas não queria a mulher que se oferecia, preferia a filha.
A mulher topou. Os três pegaram um táxi, foram para um motel, na periferia de Niterói. Quando encostou o carro na garagem do motel, o motorista notou que a menina também entrava no quarto. Achou estranho. E estranhou mais ainda quando viu que a mulher saiu, deixando a filha sozinha com o homem.
O taxista decidiu entregar: foi à gerência do motel, disse que no quarto dos fundos havia uma menina assim assim, com um cara assim assim, que podia ser o avô dela. O gerente -que protestou inocência- não tolerava bandalheiras em seu estabelecimento, chamou a polícia. O cara foi apanhado em flagrante, na hora em que tirava a roupa da menina. A mãe dera instruções sumárias à filha, "Faça o que ele pedir, seja boazinha". A menina não teve outro jeito, mostrou-se boazinha.
Normalmente, uma historinha (ou historona) dessas daria vontade de vomitar. Mas essas coisas acontecem com mais frequência do que supõe a nossa vã hipocrisia. Como todos vocês, sinto as mesmas coisas, mas sinto mais ainda. Omiti um detalhe nessa transa toda: a mulher, quando saiu com a filha em direção à churrascaria, havia trancado o companheiro em casa.
Trancou, pelo lado de fora, levando todas as chaves. O drama desse homem, perto dos 50 anos, talvez não tenha sido tão amargo. A vida perturbara a cuca dele, provavelmente deve ter adquirido aquele tipo de insensibilidade dos esclerosados. Mesmo que soubesse de tudo não sofreria tanto. Ou sofreria nada. Dizem que Deus enlouquece aqueles que quer perder.
Enfim, é uma embrulhada ao mesmo tempo simples e complicada para tirarmos conclusões -a não ser a do nojo, que não chega a ser uma conclusão, mas um processo. E de que adianta o nojo? Bem, que me perdoem esta crônica amarga, mas há um sol bonito lá fora, depois de amanhã é domingo, pé de cachimbo, o cachimbo é de ouro, deu no touro, o touro é valente, deu no tenente. O tenente da polícia encanou todo mundo, gerente do motel, mulher, tarado, só liberou a menina que voltou para o pai que nada entendeu da história. A vida continua. Seria hora de pedir meus sais, mas não há sal para a náusea.


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