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LIVRO LANÇAMENTOS
Cortázar transforma literatura
em ação
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
São cada
vez mais raros, ainda
mais entre os
jovens, os escritores capazes de refletir não sobre por que ou para que escrevem (em geral, para o mercado), mas sobre o que significa
escrever.
Julio Cortázar escreveu a
"Teoria do Túnel" em 1947, aos
33 anos, ao mesmo tempo que
redigia os contos de seu primeiro livro, "Bestiário".
Hoje, o simples vislumbre do
sucesso -e, se há faro comercial, de um retorno financeiro
- substituiu boa parte dos outros valores -senão todos-
que antes ainda podiam guiar a
literatura. O jovem escritor não
precisa mais refletir, ocupado
que está em se promover.
"Teoria do Túnel" é o primeiro volume com que a editora
Civilização Brasileira dá início
à publicação da obra crítica do
escritor argentino, com organização de Saúl Yurkievich. Sai
ao mesmo tempo que a reedição do hilariante "Histórias de
Cronópios e de Famas" (leia
texto abaixo).
Sob o pretexto de fazer uma
pequena história da literatura
ocidental neste século, com ênfase na gênese do surrealismo e
do existencialismo como as
grandes correntes literárias que
definem o momento em que escreve, Cortázar termina por expor a teoria da sua própria literatura -ali ainda em gestação,
e cujo ápice será "O Jogo da
Amarelinha" (1963), que poderá ser lido em diferentes ordens
à sugestão do autor.
Embora muito característico
de um determinado momento
histórico (pela importância dada ao surrealismo e ao existencialismo), "Teoria do Túnel"
representa ainda hoje uma das
tentativas reflexivas ao mesmo
tempo mais radicais, perspicazes e apaixonadas que um escritor pode empreender sobre
o seu próprio trabalho.
Herdeiro em linha direta dos
românticos, de Nietzsche e de
Kierkegaard, o jovem Cortázar
propõe uma literatura que não
seja meramente formal ou estética ou expressão narcisista de
um indivíduo, mas um processo maior e mais complexo de
exercício do humano em todas
as suas possibilidades.
Propõe uma literatura contra
a literatura (contra o fetiche do
livro, o uso estético da língua
etc.) para transformá-la na
própria ação, na própria vida,
não mais simples representação: "Como manifestar de maneira literária personagens que
não falam mais, e sim vivem?".
O mais fascinante desse projeto paradoxal é que ele só pode
ser realizado dentro da própria
literatura. Daí a imagem do túnel: "Essa agressão contra a linguagem literária, essa destruição de formas tradicionais tem
a característica própria do túnel; destrói para construir". Às
vezes, Cortázar lembra Artaud.
No fundo, ele tem a literatura
na mais alta conta e, por isso,
precisa defendê-la como manifestação que não se reduz ao
oficialmente literário e livresco,
mas explode numa ação poderosa, surrealista e existencialista, por buscar para além da realidade domesticada pelas convenções (literárias inclusive)
uma outra realidade que abra
ao homem a possibilidade de
levar sua experiência poética às
últimas consequências.
Sem citar, é como se o autor
seguisse os passos de Nietzsche
em "A Origem da Tragédia", ao
propor a realização desse projeto na combinação entre o
poético (o surrealismo, que faz
lembrar o aspecto dionisíaco) e
o enunciativo, ou narrativo (o
existencialismo, que faz lembrar o aspecto apolíneo). É nesse encontro que ele vê uma literatura que, embora quebrando
as convenções em nome de
uma experiência mais profunda, possa expandi-la para além
do indivíduo, para uma comunicação mais ampla. E é em
"Ulisses", de James Joyce, que
ele anuncia o surgimento dessa
possibilidade.
Durante anos foi preciso
combater a intromissão de programas políticos usurpando a
verdadeira literatura. Hoje talvez seja o caso de fazer o movimento oposto. Não o de clamar
por uma "literatura política",
engajada, comprometida com
valores programáticos, mas
por uma literatura que tenha
bases no mínimo reflexivas e
cujos valores não possam ser
reduzidos nem ao mercado,
nem à mera vaidade dos autores. É diante de um ensaio como "Teoria do Túnel" que dá
para sentir a falta que faz um
pouco dessa inteligência.
˛
Livro: Julio Cortázar - Obra Crítica 1
Organização: Saúl Yurkievich
Lançamento: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 17 (112 págs.)
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