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CARLOS HEITOR CONY
O leão e a ovelha, Elvis Presley e eu
Até hoje, aquela frase de
Mussolini faz estragos existenciais e políticos por aí: "Prefiro
um dia de leão a cem anos de ovelha". Tanto ele como Hitler e Stálin tiveram não apenas um dia,
mas alguns anos de leão. Até serem reduzidos à mansidão dos
mortos, que é maior do que a das
ovelhas.
Penso sempre nesta frase quando, imitando César que chorava
porque Alexandre com a idade
dele já havia conquistado o mundo, penso (logo em quem!) em Elvis Presley!
Não, não é bem como César e
Alexandre, que disputam o mesmo pódio na história militar. Tive
muito sonho idiota, muita ambição desvairada, quis ser maquinista da Central e padre, mas
nunca, nunca mesmo, quis ser
cantor ou artista de cinema. Não
é por aí o meu confronto pessoal
com Elvis Presley.
Deu-se que ele nasceu em 1935
-e eu já era nascido então. Morreu em 1977, e eu continuo vivo.
Quer dizer, embora à distância e
muito por cima, acompanhei sua
assombrosa carreira de leão, mas
nunca o invejei. Ovelha desconfiada e cauta, fiquei ao largo,
aguardando os acontecimentos.
Nunca assisti a um filme de Elvis, conheço pedaços que integram antologias ou documentários. Gosto de sua voz nas baladas. Foi uma das mais bonitas
que já ouvi: quando chega em alguns agudos, parece a voz daqueles beneditinos da abadia de Solésmes, cantando hinos gregorianos, cem, 200 monges numa só
voz. E esta é a voz de Elvis Presley
quando ataca algumas de suas
baladas.
Até aí tudo bem. Por mais que
gostasse da voz dele, não o invejava, não tomava conhecimento de
seu sucesso. Somente no final de
sua vida, quando começou o declínio dele, e eu editava uma revista que dava importância a esses assuntos, comecei a me interessar não pela sua glória, mas
pelo seu drama.
Lembro que, por ocasião de sua
morte, mandei traduzir um texto
que havia saído numa revista
norte-americana. Nada mais deprimente. O grande ídolo de tantos jovens estava inchado, mais
gordo do que uma porca, usava
fraldas para conter suas incontinências. Apesar de casado com
uma bela mulher, morreu sozinho no banheiro, aos 42 anos
-na mesma idade em que eu comecei realmente a viver, dando
uma banana para literatura, partindo para um novo casamento,
deixando crescer o cabelo, comprando um carrinho vermelho
em Roma, igual ao do Marcello
Mastroianni em ""A Doce Vida".
Não quer isso dizer que a ovelha
estava dando uma de leão. Pelo
contrário. Sempre embirrei com
os leões, menos o da Metro quando aparece nos desenhos do Tom
& Jerry. Tampouco gosto de ovelhas, a não ser daquelas gordinhas, de celulóide, que pastam
mansamente na tranquilidade
macia dos presépios de Natal.
Por mais que tenha feito, por
mais que tenha pintado e bordado por aí, não poderia jamais chegar aos pés do grande Elvis, que
mexia sua pélvis furiosamente e
fazia delirar todas as adolescentes
(e alguns adolescentes assim, assim) daquela geração.
O fato é que a ovelha, como
anunciava Mussolini, sobreviveu
ao leão. Bem verdade que esta sobrevivência é contestada, muita
gente há, espalhada por todo o
mundo, que acredita estar Elvis
ainda vivo. Sua imortalidade é
bem maior do que a minha, que
não passa de uma retórica de
mau gosto: já dizia Olavo Bilac
que os acadêmicos são imortais
porque não têm onde cair mortos
-o que é exatamente o meu caso.
Contudo não deixo de sentir
um certo consolo da minha mediocridade quando continuei vivendo, apesar de Elvis Presley não
viver mais. Quanta coisa vivi e vi
estando ele eternizado em seu túmulo-santuário de Memphis, repousando de sua formidável fadiga de leão.
De 1977 para cá, Frank Sinatra
veio ao Brasil -evento que parecia metafisicamente absurdo. Vi
aparecerem a Feiticeira e a Tiazinha, vibrei com as vitórias de
Ayrton Senna e chorei pelo leite
derramado quando nos negaram
as Diretas-Já. Quebrei a cara em
muitos lances, mas em outros dei
a volta por cima. Aquela moça
chegou a dizer: ""Não sei não, mas
não entendo por que você reclama tanto da vida!".
Daí a dúvida entre o leão e a
ovelha. O que é melhor: a glória
do leão, a imponência de seu grito
que estremece a floresta, ou a mediocridade da ovelha, que fica no
seu canto engordando e fornecendo sua lã para vestir e seu leite para alimentar os homens? Isso sem
falar na sua carne: após a morte,
ela continua fornecendo gorduras, proteínas e sais minerais para
saciar a nossa fome.
O leão é inútil. Faz muito sucesso em sua fase de glória, mas ou
morre sem que ninguém lhe coma
a carne ou termina nos circos,
desdentado e vencido, fazendo
acrobacias ridículas para, ao final de cada número, ganhar uma
pipoca do seu amestrador.
Bem, recusando ser leão ou ovelha, a alternativa é continuar sendo o que sou, um homem que viu
Elvis Presley nascer, triunfar, perder e morrer.
É conhecida aquela história do
final da Revolução Francesa. O
sujeito entrou numa diligência
que voltava a Paris e viu num
canto, bem escondido, um antigo
nobre da corte de Luís 16. Admirado, perguntou o que ele havia
feito durante tantos anos de Terror. Ele respondeu: ""Sobrevivi".
Vai ser ovelha assim no inferno!
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