São Paulo, sexta-feira, 09 de fevereiro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O leão e a ovelha, Elvis Presley e eu

Até hoje, aquela frase de Mussolini faz estragos existenciais e políticos por aí: "Prefiro um dia de leão a cem anos de ovelha". Tanto ele como Hitler e Stálin tiveram não apenas um dia, mas alguns anos de leão. Até serem reduzidos à mansidão dos mortos, que é maior do que a das ovelhas.
Penso sempre nesta frase quando, imitando César que chorava porque Alexandre com a idade dele já havia conquistado o mundo, penso (logo em quem!) em Elvis Presley!
Não, não é bem como César e Alexandre, que disputam o mesmo pódio na história militar. Tive muito sonho idiota, muita ambição desvairada, quis ser maquinista da Central e padre, mas nunca, nunca mesmo, quis ser cantor ou artista de cinema. Não é por aí o meu confronto pessoal com Elvis Presley.
Deu-se que ele nasceu em 1935 -e eu já era nascido então. Morreu em 1977, e eu continuo vivo. Quer dizer, embora à distância e muito por cima, acompanhei sua assombrosa carreira de leão, mas nunca o invejei. Ovelha desconfiada e cauta, fiquei ao largo, aguardando os acontecimentos.
Nunca assisti a um filme de Elvis, conheço pedaços que integram antologias ou documentários. Gosto de sua voz nas baladas. Foi uma das mais bonitas que já ouvi: quando chega em alguns agudos, parece a voz daqueles beneditinos da abadia de Solésmes, cantando hinos gregorianos, cem, 200 monges numa só voz. E esta é a voz de Elvis Presley quando ataca algumas de suas baladas.
Até aí tudo bem. Por mais que gostasse da voz dele, não o invejava, não tomava conhecimento de seu sucesso. Somente no final de sua vida, quando começou o declínio dele, e eu editava uma revista que dava importância a esses assuntos, comecei a me interessar não pela sua glória, mas pelo seu drama.
Lembro que, por ocasião de sua morte, mandei traduzir um texto que havia saído numa revista norte-americana. Nada mais deprimente. O grande ídolo de tantos jovens estava inchado, mais gordo do que uma porca, usava fraldas para conter suas incontinências. Apesar de casado com uma bela mulher, morreu sozinho no banheiro, aos 42 anos -na mesma idade em que eu comecei realmente a viver, dando uma banana para literatura, partindo para um novo casamento, deixando crescer o cabelo, comprando um carrinho vermelho em Roma, igual ao do Marcello Mastroianni em ""A Doce Vida".
Não quer isso dizer que a ovelha estava dando uma de leão. Pelo contrário. Sempre embirrei com os leões, menos o da Metro quando aparece nos desenhos do Tom & Jerry. Tampouco gosto de ovelhas, a não ser daquelas gordinhas, de celulóide, que pastam mansamente na tranquilidade macia dos presépios de Natal.
Por mais que tenha feito, por mais que tenha pintado e bordado por aí, não poderia jamais chegar aos pés do grande Elvis, que mexia sua pélvis furiosamente e fazia delirar todas as adolescentes (e alguns adolescentes assim, assim) daquela geração.
O fato é que a ovelha, como anunciava Mussolini, sobreviveu ao leão. Bem verdade que esta sobrevivência é contestada, muita gente há, espalhada por todo o mundo, que acredita estar Elvis ainda vivo. Sua imortalidade é bem maior do que a minha, que não passa de uma retórica de mau gosto: já dizia Olavo Bilac que os acadêmicos são imortais porque não têm onde cair mortos -o que é exatamente o meu caso.
Contudo não deixo de sentir um certo consolo da minha mediocridade quando continuei vivendo, apesar de Elvis Presley não viver mais. Quanta coisa vivi e vi estando ele eternizado em seu túmulo-santuário de Memphis, repousando de sua formidável fadiga de leão.
De 1977 para cá, Frank Sinatra veio ao Brasil -evento que parecia metafisicamente absurdo. Vi aparecerem a Feiticeira e a Tiazinha, vibrei com as vitórias de Ayrton Senna e chorei pelo leite derramado quando nos negaram as Diretas-Já. Quebrei a cara em muitos lances, mas em outros dei a volta por cima. Aquela moça chegou a dizer: ""Não sei não, mas não entendo por que você reclama tanto da vida!".
Daí a dúvida entre o leão e a ovelha. O que é melhor: a glória do leão, a imponência de seu grito que estremece a floresta, ou a mediocridade da ovelha, que fica no seu canto engordando e fornecendo sua lã para vestir e seu leite para alimentar os homens? Isso sem falar na sua carne: após a morte, ela continua fornecendo gorduras, proteínas e sais minerais para saciar a nossa fome.
O leão é inútil. Faz muito sucesso em sua fase de glória, mas ou morre sem que ninguém lhe coma a carne ou termina nos circos, desdentado e vencido, fazendo acrobacias ridículas para, ao final de cada número, ganhar uma pipoca do seu amestrador.
Bem, recusando ser leão ou ovelha, a alternativa é continuar sendo o que sou, um homem que viu Elvis Presley nascer, triunfar, perder e morrer.
É conhecida aquela história do final da Revolução Francesa. O sujeito entrou numa diligência que voltava a Paris e viu num canto, bem escondido, um antigo nobre da corte de Luís 16. Admirado, perguntou o que ele havia feito durante tantos anos de Terror. Ele respondeu: ""Sobrevivi". Vai ser ovelha assim no inferno!



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