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RESENHA DA SEMANA
A medida da solidão
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
As "Cartas a um Jovem
Poeta", de Rainer Maria
Rilke (1875-1926), não são nenhuma novidade (a primeira
edição brasileira, na primorosa
tradução de Paulo Rónai, é de
1953), mas não poderia haver
maior benção para os que desconfiam de que alguma coisa
não anda bem na cultura em geral e na literatura em particular.
Na breve correspondência que
manteve com o jovem admirador Franz Xaver Kappus, entre
1903 e 1908, o poeta consagrado
tentou aconselhá-lo nos seus
passos hesitantes de aspirante.
Na verdade, eram bem mais do
que conselhos literários - razão pela qual Kappus decidiu
publicar as nove cartas em 1929,
três anos depois da morte de Rilke, alegando que seus ensinamentos existenciais podiam iluminar ainda outros candidatos a
escritores.
A essência do problema do jovem poeta era a solidão. Estava
atormentado pela falta de critérios objetivos para avaliar os
seus próprios poemas. Não sabia se o que fazia era bom ou
ruim. Escreveu a Rilke na esperança de encontrar uma medida
no outro, em alguém que lhe
desse apoio e mostrasse o caminho. O poeta sabiamente recusou o papel de crítico: "Não posso entrar em considerações
acerca da feição de seus versos,
pois sou alheio a toda e qualquer
intenção crítica".
Em resumo, Rilke mostrou-lhe que não é possível criar nada
importante em literatura fora da
solidão e que é vã a busca do reconhecimento: "Peço-lhe que
deixe tudo isso. O senhor está
olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer
neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar -ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o
manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos
mais profundos de sua alma;
confesse a si mesmo: morreria,
se lhe fosse vedado escrever?".
A pergunta é um tiro no coração de uma cultura como a
atual, em que o foco foi desviado
da produção para a exposição.
Já não importa o que um escritor escreve (em parte, porque
quase ninguém lê e, em parte,
porque os que lêem parecem ter
sido contaminados pela falta de
discernimento ambiente), a medida não é mais a obra, mas o
quanto ela aparece. A imagem
do autor e sua permanência são
mais importantes do que a obra,
rapidamente esquecida ou nunca lida.
Rilke diz o contrário: "Uma
obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério
-o único existente".
A julgar por esse princípio, todo artista verdadeiro no fundo
sabe quando a sua obra é boa e
quando é ruim. Ou não é artista.
A dificuldade está em aceitar essa visão: "Aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua
grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa
vir de fora".
Ao transferir o foco da produção para a exposição, porém, a
cultura atual inverte esses valores e dá livre curso ao auto-engano. Pelos preceitos de Rilke,
não seria exagerado dizer que
boa parte dos que escrevem hoje
não sabem ou não querem saber
que não são escritores.
As cartas ao jovem poeta não
são apenas uma luz contra a enganação, mas um antídoto aos
que, diante da pobreza de espírito e da ausência de critérios geral, em vez de aceitar "o peso e a
grandeza" da própria solidão,
caem na armadilha natural e
mais fácil da amargura e do ressentimento. A solidão é a única
medida do escritor: carregá-la a
despeito de todos os percalços,
na contracorrente, é sinal da
mais profunda e verdadeira necessidade da obra.
As cartas de Rilke mostram,
na verdade, que já era assim há
cem anos, embora em proporções menos aberrantes. Hoje,
qualquer um pode dizer, da boca para fora e na maior cara-de-pau, que "morreria se lhe fosse
vedado escrever". As palavras
perderam o valor.
Ao escritor de verdade só resta
um lugar de combate análogo ao
do protagonista do belo poema
narrativo "A Canção de Amor e
de Morte do Porta-Estandarte
Cristóvão Rilke", traduzido por
Cecília Meireles e incluído ao final da edição brasileira: "No
meio do inimigo, mas completamente só" -resistindo mesmo
quando tudo em volta insiste em
lhe dizer que os seus gestos não
fazem sentido.
Cartas a um Jovem Poeta e A
Canção de Amor e de Morte do
Porta-Estandarte Cristóvão
Rilke
Briefe an Einen Jungen Dichter e Die
Weise von Liebe und Tod des Cornet
Christoph Rilke
Autor: Rainer Maria Rilke
Tradutores: Paulo Rónai e Cecília
Meireles
Editora: Globo
Quanto: R$ 14 (112 págs.)
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