São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHA DA SEMANA

A medida da solidão

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

As "Cartas a um Jovem Poeta", de Rainer Maria Rilke (1875-1926), não são nenhuma novidade (a primeira edição brasileira, na primorosa tradução de Paulo Rónai, é de 1953), mas não poderia haver maior benção para os que desconfiam de que alguma coisa não anda bem na cultura em geral e na literatura em particular.
Na breve correspondência que manteve com o jovem admirador Franz Xaver Kappus, entre 1903 e 1908, o poeta consagrado tentou aconselhá-lo nos seus passos hesitantes de aspirante. Na verdade, eram bem mais do que conselhos literários - razão pela qual Kappus decidiu publicar as nove cartas em 1929, três anos depois da morte de Rilke, alegando que seus ensinamentos existenciais podiam iluminar ainda outros candidatos a escritores.
A essência do problema do jovem poeta era a solidão. Estava atormentado pela falta de critérios objetivos para avaliar os seus próprios poemas. Não sabia se o que fazia era bom ou ruim. Escreveu a Rilke na esperança de encontrar uma medida no outro, em alguém que lhe desse apoio e mostrasse o caminho. O poeta sabiamente recusou o papel de crítico: "Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica".
Em resumo, Rilke mostrou-lhe que não é possível criar nada importante em literatura fora da solidão e que é vã a busca do reconhecimento: "Peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar -ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?".
A pergunta é um tiro no coração de uma cultura como a atual, em que o foco foi desviado da produção para a exposição. Já não importa o que um escritor escreve (em parte, porque quase ninguém lê e, em parte, porque os que lêem parecem ter sido contaminados pela falta de discernimento ambiente), a medida não é mais a obra, mas o quanto ela aparece. A imagem do autor e sua permanência são mais importantes do que a obra, rapidamente esquecida ou nunca lida.
Rilke diz o contrário: "Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Nesse caráter de origem está o seu critério -o único existente".
A julgar por esse princípio, todo artista verdadeiro no fundo sabe quando a sua obra é boa e quando é ruim. Ou não é artista. A dificuldade está em aceitar essa visão: "Aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora".
Ao transferir o foco da produção para a exposição, porém, a cultura atual inverte esses valores e dá livre curso ao auto-engano. Pelos preceitos de Rilke, não seria exagerado dizer que boa parte dos que escrevem hoje não sabem ou não querem saber que não são escritores.
As cartas ao jovem poeta não são apenas uma luz contra a enganação, mas um antídoto aos que, diante da pobreza de espírito e da ausência de critérios geral, em vez de aceitar "o peso e a grandeza" da própria solidão, caem na armadilha natural e mais fácil da amargura e do ressentimento. A solidão é a única medida do escritor: carregá-la a despeito de todos os percalços, na contracorrente, é sinal da mais profunda e verdadeira necessidade da obra.
As cartas de Rilke mostram, na verdade, que já era assim há cem anos, embora em proporções menos aberrantes. Hoje, qualquer um pode dizer, da boca para fora e na maior cara-de-pau, que "morreria se lhe fosse vedado escrever". As palavras perderam o valor.
Ao escritor de verdade só resta um lugar de combate análogo ao do protagonista do belo poema narrativo "A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke", traduzido por Cecília Meireles e incluído ao final da edição brasileira: "No meio do inimigo, mas completamente só" -resistindo mesmo quando tudo em volta insiste em lhe dizer que os seus gestos não fazem sentido.
Cartas a um Jovem Poeta e A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke

Briefe an Einen Jungen Dichter e Die Weise von Liebe und Tod des Cornet Christoph Rilke
    
Autor: Rainer Maria Rilke
Tradutores: Paulo Rónai e Cecília Meireles
Editora: Globo
Quanto: R$ 14 (112 págs.)



Texto Anterior: "Teresa de Ávila ou divino prazer": Biografia ilumina história do Ocidente
Próximo Texto: Panorâmica - Humor: Projeto Autor na Praça recebe cartunistas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.