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CRÍTICA
Diretor coloca no ringue "fantasmas" do boxe
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
No boxe a questão não é vencer e, sim, "ter uma chance",
explica Scrap (Morgan Freeman),
ex-lutador cujo nome poderia ser
traduzido por rebotalho e que é
também o narrador do filme.
A história que conta diz respeito
a Frank Dunn (Clint Eastwood),
velho treinador e um perdedor.
Como mais ou menos todos no
boxe, é o que dá a entender Scrap.
O fato, porém, é que "Menina
de Ouro" não é senão acessoriamente um filme sobre a arte, dita
"nobre", do boxe. Mas passa por
ela, e não por acaso. Trata-se de
um esporte extremo. Quem passa
por ele carrega dores, cicatrizes,
remorsos. Perdas, enfim.
Não sabemos com precisão
quais as dores que Frank carrega,
mas podemos imaginá-las. Cada
frase que consente em proferir
parece a ponta de um iceberg, traz
marcadas as derrotas que a vida
lhe infligiu e que nem sempre
aconteceram dentro do ringue.
Basta ver o caso da filha, que se recusa até a receber suas cartas.
O boxe é, ao que parece, uma escola de perdedores e, mais, um esporte fora de moda: essa história
do indivíduo em situação extrema que se bate para triunfar na
adversidade -tudo isso parece
pertencer a um outro tempo. Na
mitologia contemporânea, a "nobre arte" perdeu espaço para artes
marciais ou vale-tudo. Tornou-se,
eis o fato, coisa de mulher.
Daí o aparecimento de Maggie
Fitzgerald (Hilary Swank) na decadente academia ter tudo para
ser um alento para Frank: ele não
é bem um homem -é o fantasma
de um esporte em agonia.
Mas outro aspecto importante é
o lado hawksiano deste filme. Há
pouco tempo, Clint lembrava, numa entrevista, que o primeiro filme a ter visto na vida foi "Sargento York". E que via em "Jejum de
Amor" um exemplo do que é o
roteiro de cinema. São dois filmes
de Howard Hawks, o cineasta da
"câmera à altura do homem".
Frank é um personagem com
características dos personagens
de Hawks: afirma-se como homem, desafia a fé constantemente
e quer distância de mulher.
Maggie será, para ele, a própria
vida: a substituta da filha que o renegou. Por isso não quer treinar
mulheres: sabe que são um perigo
para o homem, para o nada masculino. Mas Maggie, qual uma heroína hawksiana, se impõe.
As semelhanças ficam por aí.
Aqui não se trata, como em
Hawks, do amor de um homem
por uma mulher, mas de uma
afeição profissional ou de uma relação entre pai e filha, dois seres
solitários que precisam do outro.
Se Hawks é o cineasta da afirmação humana, que tira Deus da
jogada, Clint é um cineasta de
mortos-vivos. A morte espreita a
cada passo. Ela está na narração
de Scrap, em cada vez que uma
pessoa sobe no ringue. É verdade
que a presença de Maggie o traz à
vida por um tempo. Será até um
momento cheio de sentimentalidade que talvez seja uma maneira
de preparar a secura chocante do
final. Do qual emergirá um Frank
Dunn de volta a sua condição original: de homem fantasma.
Menina de Ouro
Million Dollar Baby
Direção: Clint Eastwood
Produção: EUA, 2004
Quando: estréia na sexta no Brasil
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