São Paulo, quarta-feira, 09 de fevereiro de 2005

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CRÍTICA

Diretor coloca no ringue "fantasmas" do boxe

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No boxe a questão não é vencer e, sim, "ter uma chance", explica Scrap (Morgan Freeman), ex-lutador cujo nome poderia ser traduzido por rebotalho e que é também o narrador do filme.
A história que conta diz respeito a Frank Dunn (Clint Eastwood), velho treinador e um perdedor. Como mais ou menos todos no boxe, é o que dá a entender Scrap.
O fato, porém, é que "Menina de Ouro" não é senão acessoriamente um filme sobre a arte, dita "nobre", do boxe. Mas passa por ela, e não por acaso. Trata-se de um esporte extremo. Quem passa por ele carrega dores, cicatrizes, remorsos. Perdas, enfim.
Não sabemos com precisão quais as dores que Frank carrega, mas podemos imaginá-las. Cada frase que consente em proferir parece a ponta de um iceberg, traz marcadas as derrotas que a vida lhe infligiu e que nem sempre aconteceram dentro do ringue. Basta ver o caso da filha, que se recusa até a receber suas cartas.
O boxe é, ao que parece, uma escola de perdedores e, mais, um esporte fora de moda: essa história do indivíduo em situação extrema que se bate para triunfar na adversidade -tudo isso parece pertencer a um outro tempo. Na mitologia contemporânea, a "nobre arte" perdeu espaço para artes marciais ou vale-tudo. Tornou-se, eis o fato, coisa de mulher.
Daí o aparecimento de Maggie Fitzgerald (Hilary Swank) na decadente academia ter tudo para ser um alento para Frank: ele não é bem um homem -é o fantasma de um esporte em agonia.
Mas outro aspecto importante é o lado hawksiano deste filme. Há pouco tempo, Clint lembrava, numa entrevista, que o primeiro filme a ter visto na vida foi "Sargento York". E que via em "Jejum de Amor" um exemplo do que é o roteiro de cinema. São dois filmes de Howard Hawks, o cineasta da "câmera à altura do homem".
Frank é um personagem com características dos personagens de Hawks: afirma-se como homem, desafia a fé constantemente e quer distância de mulher.
Maggie será, para ele, a própria vida: a substituta da filha que o renegou. Por isso não quer treinar mulheres: sabe que são um perigo para o homem, para o nada masculino. Mas Maggie, qual uma heroína hawksiana, se impõe.
As semelhanças ficam por aí. Aqui não se trata, como em Hawks, do amor de um homem por uma mulher, mas de uma afeição profissional ou de uma relação entre pai e filha, dois seres solitários que precisam do outro.
Se Hawks é o cineasta da afirmação humana, que tira Deus da jogada, Clint é um cineasta de mortos-vivos. A morte espreita a cada passo. Ela está na narração de Scrap, em cada vez que uma pessoa sobe no ringue. É verdade que a presença de Maggie o traz à vida por um tempo. Será até um momento cheio de sentimentalidade que talvez seja uma maneira de preparar a secura chocante do final. Do qual emergirá um Frank Dunn de volta a sua condição original: de homem fantasma.


Menina de Ouro
Million Dollar Baby
    
Direção: Clint Eastwood
Produção: EUA, 2004
Quando: estréia na sexta no Brasil


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