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Cinema - Crítica/"Sombras"
Cassavetes busca verdade na aparência
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
No fim dos anos 50,
Hollywood já era a capital do cinema. Detinha o monopólio das convenções cinematográficas e de um
modo (custoso e, então, deficitário) de produzir filmes.
Talvez por ser ator em Hollywood, John Cassavetes compreendeu com precisão esse
mundo e o quanto sua qualidade de sistema podia afastar os
filmes da verdade.
Professor de atores em Nova
York, é lá -e com eles- que inicia uma das mais fascinantes
aventuras pessoais da história
do cinema. Sim, porque se em
Paris a nouvelle vague começava um movimento amplo de renovação, isso se dava após muita reflexão -e em grupo. Nos
EUA, Cassavetes avançará praticamente só com "Sombras".
No centro da história, existe
uma garota negra (Lelia Goldoni), seu amor por um rapaz
branco (Anthony Ray) e suas
relações com os irmãos. Não há
muito mais história do que isso,
na verdade. O filme se organiza
a partir de algumas situações
de base -como esse amor e as
relações interraciais-, mas não
evolui de modo tradicional.
Ao contrário, o filme parece
vagar pelas ruas, pelos bares,
pelos apartamentos de Nova
York, muito mais interessado
no que cada um desses lugares
possa revelar do que em contar
uma história.
Da mesma forma, quando se
trata dos personagens, é a verdade de cada situação que Cassavetes parece perseguir obstinadamente. O improviso é o
que dá o tom ao filme -como
aconteceria ao longo da carreira de Cassavetes como diretor-, mas é preciso compreender o improviso, aqui, como
uma disciplina desenvolvida
pelos atores, por esses atores
em quem Cassavetes confiava
infinitamente.
Do improviso deriva esse
frescor que ainda hoje (melhor
dizendo: hoje -reinado da indústria cultural- mais do que
nunca) impressiona. Quando
Lelia e Tony vão para a cama
(primeira relação sexual dela)
não parecem dois atores, parecem dois amantes. Os lugares
públicos não têm cara de estúdio, são lugares vivos.
Cassavetes começava a criar
aqui, neste filme sintético (diferente da maior parte de sua
obra, "Sombras" tem menos de
90 minutos), essa forma de realismo vertiginoso e de certa forma inimitável que caracteriza
seus filmes: nada é símbolo, nada remete a outra coisa ou outro lugar, tudo é afirmação de
um aqui e agora inescapável.
Um realismo inimitável, mas
que acaba marcando o cinema,
especialmente o americano.
Nem falemos dos cineastas da
"geração das escolas" ou dos
chatos independentes (que reduziram o improviso realista a
uma codificação acadêmica).
Mas em certas cenas onde se
manifestam os intelectuais nova-iorquinos, podemos perceber de onde vem o melhor de
Woody Allen: não vem de Bergman, nem de Fellini. Vem de
Cassavetes. Seria muito bom
se, em vez de olharmos esse filme como um monumento, o
víssemos como ele é, uma lição
de algo que, a cada filme, precisa ser reencontrado: a verdade
que está nas aparências.
SOMBRAS
Direção: John Cassavetes
Produção: EUA, 1959
Com: Ben Carruthers, Lelia Goldoni
Quando: em cartaz no Cinesesc
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