|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Anúncios sutis como elefantes
Não tenho boa memória para publicidade. E seria muito neurótico de minha parte ficar na frente da TV anotando o texto
exato do anúncio só para comentar depois. Não sei se era de um
banco, de um provedor de internet ou de companhia telefônica.
Só sei que aparecia um tipo em
trajes de banho, numa espreguiçadeira, curtindo sua piscininha.
Ao lado, a namorada de maiô. O
locutor começa: "Que tal se você
mudasse de namorada... arranjasse uma mais simpática, mais
bonita, mais interessante... etc."
E, num truque de computador,
surge uma loiraça de biquíni contorcendo-se na frente do rapaz.
Irresistível. Espetacular. O carinha se interessa.
"Ah, não", brinca o locutor. Você não vai abandonar a sua namorada, não é? Puf, a loira some
e o rapaz volta à situação de início. Que decepção. "Mas você pode", festeja o locutor, "mudar de
banco ou de seguradora! E a nossa empresa é tão espetacular
quanto a loira desaparecida."
Fico chocado. Não quero ser
moralista demais. O escandaloso
do anúncio não é que se faça o
elogio do adultério. O que faz de
pior é tratar a situação "normal"
do personagem -muito feliz ali
com a namorada, que nada tinha
feito de errado- como sinal de
perda, de fracasso, de burrice.
É como se o anúncio dissesse:
meu poder é tão grande, as tentações que manipulo são tão poderosas, que eu sei e você sabe que o
certo é largar tudo e ir correndo
atrás delas. O seu desinteresse pelos meus serviços -sua fidelidade, seu amor pela namorada-
são pura hipocrisia. Muito bem,
estou dando uma chance a você
de provar para mim que não é
otário nem hipócrita: afogue sua
namorada na piscina, delete-a da
memória e assine aqui este contrato. A pessoa que está do seu lado, sabemos, é apenas uma fornecedora de serviços não muito satisfatória se comparada à loiraça
que, agora, você teme perder.
A brutalidade desse anúncio de
alguma forma se autodenuncia.
Quanto mais vejo TV, mais dificuldade tenho em dissociar publicidade de prostituição. Mas o
cliente poderia ao menos ter a ilusão de que gostam mesmo dele. Já
estão me tirando isso. Penso em
outro anúncio.
O pai aparece dirigindo um carro, com a filha adolescente no
banco de trás. Ela vai logo dizendo: "Pode parar, fico aqui mesmo,
não precisa me levar até a porta".
A situação se repete com outro
adolescente. Claro, pensamos, filhos dessa idade têm vergonha de
serem vistos junto com os pais.
Mas não era isso. Um terceiro
menino, de uns 11 anos, faz questão do contrário. Quer que o pai o
deixe bem na porta do cinema,
onde será visto pelos amigos. A
câmera se afasta, e vemos a razão. É que o pai do menino tem
um carro da marca X... e o garoto
quer exibi-lo diante dos coleguinhas.
Conclusão do amável locutor
(será o mesmo?): não é que seus filhos tenham vergonha de você.
Eles têm vergonha é do seu carro.
Mas como o locutor sabe qual é
o meu carro? A minha namorada,
tudo bem, ele e eu já concordamos que é fraquinha, devendo ser
dispensada sem aviso prévio. Mas
o meu carro?
A conclusão do anúncio, claro, é
diversa daquela apresentada.
Quando eu comprar o carro indicado, poderei levar meus filhos
até a porta do cinema ou da festinha. Não é que meus filhos devam ter orgulho de mim: eles devem ter orgulho é do meu carro.
Que valores, hein? Num ambiente desses, dizer que Bush "defende" os "valores ocidentais" no
Iraque -democracia, liberdade,
direitos humanos- não soa muito convincente. Os verdadeiros
valores ocidentais, por aqui, parecem ser outros.
Por falar em Ocidente e em carros, cito um último anúncio, mais
sutil. Vale como símbolo, sem dúvida autoconsciente, da comédia
da globalização e do colapso das
economias nacionais do Terceiro
Mundo.
Estamos na Índia ou no Paquistão, tanto faz. Um rapaz "étnico"
tem um carrinho da década de
60, todo quadrado, não sei de que
marca -alguma fábrica local já
extinta.
Pega o carro, bate contra um
muro, amassa-o de todos os lados,
e até convoca um elefante para
sentar-se no capô. (Na Índia, há
elefantes por toda parte, e talvez
isso atrapalhe muito o trânsito.
Por isso mesmo, quero um motor
mais potente). Em todo o caso, o
elefante fez um bom serviço. Ajuda a tornar o carro um pouco
mais arredondado, do jeito que o
indiano queria.
Sim, pois o que nosso mísero nativo desejava era tornar seu carrinho o mais parecido possível com
o novo modelo da marca Y, um
prodígio do design arredondado.
E eis agora o indiano na porta de
uma boate, tentando fazer sucesso com a prensagem elefantina do
seu velho modelo. Será que foi
buscar o filho?
Mas eles continuam tendo filhos lá na Índia?
E continuam fazendo carros?
Melhor importar logo um de fora.
E também a loiraça.
Texto Anterior: Show: "Gimme Shelter" enterra sonho hippie Próximo Texto: Literatura: O retorno do apanhador Índice
|