São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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"CRASH"

Grande surpresa no Oscar, estréia de Paul Haggis chega às locadoras

Drama fica na corda bamba entre o cinismo e a esperança

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Escrito e dirigido por Paul Haggis (roteirista de "Menina de Ouro"), "Crash - No Limite" ganhou o Oscar de melhor filme, melhor montagem e melhor roteiro original. O grande favorito era "O Segredo de Brokeback Mountain", que acabou sendo mais visto e comentado. Outros concorrentes ao prêmio, como "Capote" e "Boa Noite e Boa Sorte", também pareceram mais atraentes e de certo modo mais íntegros, mais focados esteticamente do que este painel dos choques interraciais em Los Angeles.
"Crash" é um daqueles filmes com uma dezena de histórias habilmente entrelaçadas, cheios de personagens marcantes, sem que nenhum acabe assumindo o primeiro plano e se "responsabilizando", por assim dizer, pela mensagem final do roteiro. Depois de "Traffic", "Short Cuts" ou "Faça a Coisa Certa", o risco de falta de originalidade -tanto na forma quanto no tema- atravessa "Crash" de ponta a ponta, e para quem assiste a ele em DVD os defeitos e incômodos do gênero se tornam ainda mais sensíveis.
O policial branco racista (Matt Dillon) cuida com carinho de um pai nas últimas; o chaveiro chicano, discriminado pela grã-fina (Sandra Bullock), diz para a filhinha encantadora que nada de ruim acontecerá com ela; o investigador de homicídios negro (Don Cheadle) tem um irmão procurado pela polícia; o procurador de Justiça branco, que aliás é marido da grã-fina, tenta incriminar injustamente um outro policial branco, para ficar bem com a comunidade negra; um comerciante iraquiano, a quem xingam de "Osama", planeja vinganças tremendas contra uma família latina, enquanto ali por perto um chinês é vitimado por dois assaltantes negros.
Cada personagem, enfim, tem seus conflitos, apresentados de maneira excessivamente clara e econômica. É só assim que dá tempo para tantos destinos se entrechocarem ao sabor de acasos engenhosos e de diversos acidentes de automóvel -donde o título do filme. Como em "Traffic" -um filme pior, menos surpreendente e acidentado-, o ar de programa piloto de minissérie circunda "Crash" como uma ameaça, e isso se agrava na tela doméstica; sem contar que a extrema tensão de algumas cenas iniciais (a rigor uma qualidade do filme) também incita a apertar o "stop" do controle remoto.
Seria uma injustiça. Apesar do esquematismo das situações -não há personagem que não revele em meio minuto todos os seus preconceitos e ressentimentos-, "Crash" é mais ambíguo (para o bem e para o mal) do que parece. À medida que a história se desenvolve, os personagens se descobrem diferentes do que pensavam ser, e o próprio filme desarma a sensação de previsibilidade que sua linguagem produzia no espectador.
Em meio a uma situação que parece absolutamente sem saída, em que o discurso anti-racista se torna instrumento de novas discriminações, "Crash" ressalta a capacidade de cada indivíduo transcender, pelos acidentes da vida, a fatalidade social. Não é à toa que o filme se passa num dezembro especialmente frio: as árvores decoradas, como a neve que cai magicamente em Los Angeles, conferem uma aura de conto natalino à violência das situações.
Com todos os ingredientes de um drama aflitivo e realista, ao estilo de Spike Lee, produz-se, assim, um filme próximo das comédias otimistas de Frank Capra (devo a observação a um entusiasta de "Crash", Contardo Calligaris). Baseado num sistema bem maquinado de coincidências, batidas de carro, súbitas conversões ao bem e reviravoltas felizes de expectativa, o filme tem estrutura de comédia, embalada num tema desesperador. Cinismo ou esperança? O equilíbrio é tão milimétrico, tão virtuosístico, tão premeditado, que "Crash" não se decide e termina tendo na habilidade do roteiro o seu maior defeito.


Crash - No Limite
   
Direção:
Paul Haggis
Distribuidora: Imagem; só para locação



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