São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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FERREIRA GULLAR

Morte do Opinião

Na noite de 31 de março de 1964, a sede da UNE, na praia do Flamengo, foi metralhada. Uma hora antes, encerrara-se ali a reunião de intelectuais e artistas que a direção do Centro Popular de Cultura (CPC) havia convocado para resistir ao golpe militar, deflagrado aquela tarde em Minas Gerais. Um de nossos companheiros, atingido por um tiro, foi levado às pressas para um pronto-socorro. Por volta de uma da manhã, decidiu-se que uma parte do grupo iria para casa dormir, a fim de, no dia seguinte, render os que ficassem de vigília.
Ao acordar, por volta das 11h, ouvi pelo rádio que o forte de Copacabana fora tomado pelos golpistas e que o presidente João Goulart deixara Brasília para não ser preso. Depois do almoço, no carro de um amigo, eu e Teresa fomos até a Cinelândia, que encontramos ocupada por tanques e soldados armados. De volta pela praia do Flamengo, assistimos ao incêndio da sede da UNE por fanáticos que passavam por nós com as bombas e armas na mão. Se nos reconhecessem, teríamos sido linchados.
O que se previa aconteceu. Os novos donos do poder desencadearam a perseguição contra políticos e intelectuais que vinham exigindo reformas profundas na sociedade brasileira.
Prisões, cassações, invasões de instituições e de residências, abertura de inquéritos policial militares, era o terror que se espalhava por todo o país. Apesar disso, a intelectualidade não se intimidou e, clandestinamente, foi se reorganizando e buscando meios de lutar pela restauração das liberdades democráticas.
Meses depois, no pequeno apartamento em que morava em Ipanema, realizou-se uma reunião que teria muitas conseqüências na luta contra o regime militar. Dessa reunião participaram Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa, Teresa Aragão, João das Neves, Pichín Plá e eu, com o objetivo de decidir a retomada de nossa atividade cultural: o antigo CPC ia ressurgir como um novo grupo teatral. Resolvemos montar um espetáculo político-musical, de que participariam Nara Leão, Zé Keti e João do Vale. Esse espetáculo ganhou o nome de "Opinião".
Para que os milicos não se dessem conta de que era a nova cara do CPC, chamamos Augusto Boal para dirigi-lo e pedimos ao Teatro de Arena de São Paulo que nos emprestasse o nome para constar como produtor do espetáculo. Em novembro de 1964, sete meses depois do golpe, estreou o show "Opinião", num teatro improvisado de um shopping inacabado da rua Siqueira Campos, em Copacabana.
O novo teatro consistia num estrado de madeira no centro da sala e, em volta, velhas cadeiras que haviam pertencido a um cinema de São Paulo e que nos chegaram cobertas de lama. Passamos uma tarde e uma noite lavando-as e montando-as, com a ajuda de dois marceneiros. A partir daí, começaram os ensaios, com emoção e expectativa. Estávamos certos de que cumpríamos com nosso papel.
A estréia superou as expectativas, o público reagiu comovido e entusiasmado com aquele show que era o primeiro ato público contra a ditadura. Escrito com talento e inteligência, mesclando protesto e bom humor, o espetáculo ganhou a adesão do público, que passou a lotá-lo com um mês de antecedência.
Ao êxito do show "Opinião" sucedeu o de "Liberdade Liberdade", montagem de textos e músicas concebida por Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A liberdade era ali cantada em prosa e verso, desde a Grécia até o presente, nas palavras de Sócrates a Voltaire, de Lincoln a Martin Luther King. Os milicos, inconformados, tentaram tirar o espetáculo de cartaz pela violência, mas não conseguiram.
No entanto, o regime, que necessitava calar a classe teatral, obteve sua primeira vitória proibindo "O Berço do Herói", de Dias Gomes, dirigido por Antônio Abujamra. A classe teatral, reunida no Opinião, subscreveu um manifesto de protesto, que deu em nada. Era o primeiro de uma série de golpes que visavam levar à ruína os grupos teatrais.
Após a temporada de "Liberdade Liberdade", decidimos pôr em cena uma peça que, sem abrir mão de nossa posição, neutralizasse a censura. Vianinha deu a chave: uma peça muito engraçada e que fosse uma obra de arte. O grupo todo colaborou na criação da história de "Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come", escrita por Vianinha e por mim. Dirigida por Gianni Ratto, conquistou o público e ganhou todos os prêmios teatrais daquele ano. Pouco depois, prepostos da ditadura puseram uma bomba em nosso teatro, o que assustou o público, levando-nos à falência.
Mas o Teatro Opinião continuou funcionando, já então como propriedade de João das Neves. Vendido a Adamy Dantas, mudou de nome para Teatro de Arena e, depois, para Café-Teatro de Arena, que agora fechou definitivamente para se tornar sede do Quinto Juizado Especial de Pequenas Causas.
O governo do Estado e a prefeitura, que tanto dinheiro gastam com propaganda e shows de "pop stars", nada fizeram para evitar a morte de mais um teatro no Rio e, desta vez, um teatro que fazia parte da história do país, entre cujas paredes se travou uma pequena parte da luta pela democracia brasileira.


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