|
Texto Anterior | Índice
FERREIRA GULLAR
Morte do Opinião
Na noite de 31 de março de
1964, a sede da UNE, na
praia do Flamengo, foi metralhada. Uma hora antes, encerrara-se
ali a reunião de intelectuais e artistas que a direção do Centro Popular de Cultura (CPC) havia
convocado para resistir ao golpe
militar, deflagrado aquela tarde
em Minas Gerais. Um de nossos
companheiros, atingido por um
tiro, foi levado às pressas para um
pronto-socorro. Por volta de uma
da manhã, decidiu-se que uma
parte do grupo iria para casa dormir, a fim de, no dia seguinte,
render os que ficassem de vigília.
Ao acordar, por volta das 11h,
ouvi pelo rádio que o forte de Copacabana fora tomado pelos golpistas e que o presidente João
Goulart deixara Brasília para
não ser preso. Depois do almoço,
no carro de um amigo, eu e Teresa fomos até a Cinelândia, que
encontramos ocupada por tanques e soldados armados. De volta pela praia do Flamengo, assistimos ao incêndio da sede da
UNE por fanáticos que passavam
por nós com as bombas e armas
na mão. Se nos reconhecessem, teríamos sido linchados.
O que se previa aconteceu. Os
novos donos do poder desencadearam a perseguição contra políticos e intelectuais que vinham
exigindo reformas profundas na
sociedade brasileira.
Prisões, cassações, invasões de
instituições e de residências, abertura de inquéritos policial militares, era o terror que se espalhava
por todo o país. Apesar disso, a intelectualidade não se intimidou e,
clandestinamente, foi se reorganizando e buscando meios de lutar pela restauração das liberdades democráticas.
Meses depois, no pequeno apartamento em que morava em Ipanema, realizou-se uma reunião
que teria muitas conseqüências
na luta contra o regime militar.
Dessa reunião participaram Vianinha, Paulo Pontes, Armando
Costa, Teresa Aragão, João das
Neves, Pichín Plá e eu, com o objetivo de decidir a retomada de nossa atividade cultural: o antigo
CPC ia ressurgir como um novo
grupo teatral. Resolvemos montar um espetáculo político-musical, de que participariam Nara
Leão, Zé Keti e João do Vale. Esse
espetáculo ganhou o nome de
"Opinião".
Para que os milicos não se dessem conta de que era a nova cara
do CPC, chamamos Augusto Boal
para dirigi-lo e pedimos ao Teatro de Arena de São Paulo que
nos emprestasse o nome para
constar como produtor do espetáculo. Em novembro de 1964, sete
meses depois do golpe, estreou o
show "Opinião", num teatro improvisado de um shopping inacabado da rua Siqueira Campos,
em Copacabana.
O novo teatro consistia num estrado de madeira no centro da sala e, em volta, velhas cadeiras que
haviam pertencido a um cinema
de São Paulo e que nos chegaram
cobertas de lama. Passamos uma
tarde e uma noite lavando-as e
montando-as, com a ajuda de
dois marceneiros. A partir daí, começaram os ensaios, com emoção
e expectativa. Estávamos certos
de que cumpríamos com nosso
papel.
A estréia superou as expectativas, o público reagiu comovido e
entusiasmado com aquele show
que era o primeiro ato público
contra a ditadura. Escrito com talento e inteligência, mesclando
protesto e bom humor, o espetáculo ganhou a adesão do público,
que passou a lotá-lo com um mês
de antecedência.
Ao êxito do show "Opinião" sucedeu o de "Liberdade Liberdade", montagem de textos e músicas concebida por Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A liberdade
era ali cantada em prosa e verso,
desde a Grécia até o presente, nas
palavras de Sócrates a Voltaire,
de Lincoln a Martin Luther King.
Os milicos, inconformados, tentaram tirar o espetáculo de cartaz
pela violência, mas não conseguiram.
No entanto, o regime, que necessitava calar a classe teatral, obteve sua primeira vitória proibindo "O Berço do Herói", de Dias
Gomes, dirigido por Antônio
Abujamra. A classe teatral, reunida no Opinião, subscreveu um
manifesto de protesto, que deu
em nada. Era o primeiro de uma
série de golpes que visavam levar
à ruína os grupos teatrais.
Após a temporada de "Liberdade Liberdade", decidimos pôr em
cena uma peça que, sem abrir
mão de nossa posição, neutralizasse a censura. Vianinha deu a
chave: uma peça muito engraçada e que fosse uma obra de arte. O
grupo todo colaborou na criação
da história de "Se Correr o Bicho
Pega, se Ficar o Bicho Come", escrita por Vianinha e por mim. Dirigida por Gianni Ratto, conquistou o público e ganhou todos os
prêmios teatrais daquele ano.
Pouco depois, prepostos da ditadura puseram uma bomba em
nosso teatro, o que assustou o público, levando-nos à falência.
Mas o Teatro Opinião continuou funcionando, já então como
propriedade de João das Neves.
Vendido a Adamy Dantas, mudou de nome para Teatro de Arena e, depois, para Café-Teatro de
Arena, que agora fechou definitivamente para se tornar sede do
Quinto Juizado Especial de Pequenas Causas.
O governo do Estado e a prefeitura, que tanto dinheiro gastam
com propaganda e shows de "pop
stars", nada fizeram para evitar a
morte de mais um teatro no Rio e,
desta vez, um teatro que fazia
parte da história do país, entre
cujas paredes se travou uma pequena parte da luta pela democracia brasileira.
Texto Anterior: Novelas da semana Índice
|