São Paulo, sábado, 09 de abril de 2011

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OPINIÃO

Escritor criou sua obra a partir do lixo na memória coletiva

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nascido em São Paulo, Valêncio Xavier (1933-2008) dizia ser curitibano "há 500 anos". De fato, pertenceu à geração de Paulo Leminski (1944-1989), Jamil Snege (1939-2003), Manoel Carlos Karam (1947-2007) e Wilson Bueno (1949-2010).
Ele atuou como pesquisador de cinema (criou a Cinemateca de Curitiba) e cineasta, mas celebrizou-se como autor de personalíssima obra literária.
Inventor de um método de composição baseado na montagem cinematográfica e na mistura de imagens e palavras, foi o primeiro e último dadaísta brasileiro, parecendo reunir todos os movimentos de vanguarda em si, com sua estampa singular de cientista russo fugido da ilha de montagem.
Como acontece com todo criador radical, Valêncio Xavier ao mesmo tempo necessita e exige ser lembrado. A comparação com vanguardistas europeus do início do século 20, porém, não faz jus ao escritor brasileiro.
Dadaístas, surrealistas etc, são mais conhecidos por seus manifestos e pela vida bombástica do que pelos livros, não tendo alcançado sua eficácia narrativa.
Em "O Mez da Grippe" (1981), sua "novella" mais lembrada, Xavier relata a epidemia de gripe espanhola que assolou Curitiba em 1918 através da justaposição de recortes de jornal da época. Em meio a anúncios publicitários, colunas sociais e a progressão do armistício da Primeira Guerra, a história de uma violação e de um múltiplo assassinato.
Explorando obsessivamente a morte do indivíduo como tema essencial de suas diferentes "novellas" e "raccontos", Xavier contiguamente também abordava outra morte, desta vez pública, da memória coletiva.

MATÉRIA-PRIMA
Ao restringir seus relatos quase exclusivamente à primeira metade do século 20, adotava técnicas narrativas dos primórdios do cinema, do rádio e da imprensa gráfica, ferramentas esquecidas, imiscuindo assim os homicídios de anônimos que ocupam o centro de suas histórias ao assassinato cultural, mais amplo, do esquecimento do passado histórico.
Para operar tal reflexão, a matéria-prima de Xavier era seu acervo pessoal de livros, filmes e documentos. Daí a ironia de seu passamento adquirir tom tão cruel.
Não bastasse o homem que criou sua obra a partir do lixo da memória coletiva ser vitimado pelo Alzheimer, agora a biblioteca de Valêncio Xavier foi dissipada pela falta de mecanismos públicos ou privados que se preocupem e legitimem a importância fundamental de tais acervos sem essa morosidade típica das questões culturais.

JOCA REINERS TERRON é autor de "Do Fundo do Poço Se Vê a Lua" (Companhia das Letras)


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