São Paulo, quinta, 9 de abril de 1998

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TRUFFAUT BIOGRAFADO
Um cineasta com alma de "desperado"

do enviado especial ao Rio

"François Truffaut" é um romance, antes de ser uma biografia. E que romance! Existe ali o filho de mãe solteira, mal amado pela mãe e incompreendido por seu pai legal (que lhe deu o sobrenome).
Existe também o menino apaixonado por livros e filmes, o menor infrator que frequenta reformatórios. E o jovem que se alista no Exército para logo em seguida desertar. E cujo grande amor pelas mulheres o leva a contrair sífilis.
Por sorte, "François Truffaut" é uma biografia, de maneira que seus autores, Serge Toubiana e Antoine de Baecque, não podem ser acusados de acumular episódios rocambolescos a torto e a direito, ou de plagiar um romance do século 19.
E, se os primeiros anos da vida de Truffaut são extremamente romanescos, o que se segue -tudo o que se segue- parece ser uma longa reflexão sobre essa infância e juventude turbulentas.
O Truffaut adulto -a partir de 18 anos, digamos- é o homem que de algum modo busca tirar, desse alvorecer caótico, uma personalidade. Tem "uma alma de 'desperado' ", escreverá a ele Jean Genet, o dramaturgo, a quem fascina no momento em que vive seu último drama juvenil: a deserção do Exército e a prisão.
É também o momento em que Truffaut procura mais intensamente a amizade e a tutela de homens mais velhos: além de Genet, o poeta Jean Cocteau, André Bazin, o mentor dos "Cahiers du Cinéma", Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa.
Mas a alma de "desperado" é dotada de um profundo espírito de independência, o que o leva a tornar-se o crítico mais polêmico da história do cinema.
Com uma penada, pode decretar que "o cinema francês morre sob as falsas lendas" e com a mesma desenvoltura assume a defesa dos cineastas desprezados pela crítica da época: Max Ophuls, Jean Renoir, Sacha Guitry.
Após viver a infância e a adolescência sob a Ocupação, não tem uma visão muito favorável da França durante a guerra, nem de sua intelectualidade. A época ajuda-o a forjar uma forte desconfiança sobre a solidez da intelectualidade francesa.
Nasce um polemista temível, que, ao atacar o cinema francês, está, na verdade, combatendo a boa consciência francesa, que maquiara a vergonhosa história do país durante a Segunda Guerra Mundial.
Como disse alguém, se não fosse um grande cineasta, Truffaut teria sido um grande jornalista. Tinha um raro sentido da notícia e uma escrita aguda, vibrante e virulenta.
Mas, para chegar aonde quer, não raro abdica da hipótese de ter um caráter impoluto. Suja as mãos para abrir seu caminho.
Talvez por isso seu casamento, aos 26 anos, com a filha de um grande distribuidor tenha sido visto por seus muitos inimigos como um belo golpe do baú, de que se originaria seu primeiro filme, "Os Incompreendidos".
A partir daí, no entanto, existe um novo Truffaut, aquele que se tornaria conhecido como o cineasta oficial por excelência. Truffaut esculpe, ele próprio, sua imagem, adocica-a. Sai de cena o marginal, triunfa o sedutor, o homem que amava as mulheres.
Haverá percalços nessa trajetória, sem dúvida, como o momento da ruptura com o velho amigo Jean-Luc Godard, em que Truffaut retoma a veia de polemista para endereçar ao ex-amigo uma carta amarga e demolidora.
Essa ruptura de certo modo consagra o fim da nouvelle vague, num momento em que toda a intelectualidade inclinava-se para a esquerda e a obra de Truffaut era vista como um "divertissement" talentoso, porém inócuo -estigma de que o cineasta só veio a se livrar após sua morte.
"François Truffaut" é, para resumir, um romance, uma biografia, uma história da melhor crítica de cinema que já houve, uma viagem detalhada pelo trabalho de um grande cineasta.
Mas é um pouco mais. O livro de Toubiana e De Baecque nos conduz aos complexos meandros da alma de um homem que em sua história pessoal e intelectual encarna como poucos a história, as contradições, a tradição, a fraqueza e a força da França neste século.
Toubiana e De Baecque nos mostram com grande fineza como Truffaut é um autor integral, que em cada filme reprocessava os momentos amargos de sua infância, empenhando-se em transformá-los em momentos de leveza, humor, elegância.
Nesse sentido, não é impossível que a imagem de si mesmo construída por Truffaut corresponda menos ao desejo de mostrar-se como homem de bem do que a um ideal artístico que consiste em transformar a experiência dolorosa em beleza. (INÁCIO ARAUJO)

Livro: François Truffaut - Uma Biografia
Editora: Record
Preço: R$ 49 (584 págs.)
Lançamento: hoje, no Estação Botafogo



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