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São Paulo, sexta-feira, 09 de maio de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"CONTO DE VERÃO"

Em longa-metragem do diretor francês, imagens simples parecem até simplórias ao olhar desavisado

Evidências de Eric Rohmer ocupam a tela

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Impossível não perceber o encanto de Margot. Qualquer um na platéia de "Conto de Verão" percebe, assim que ela entra em cena. Só Gaspard não nota. Só Margot parece notar a existência de Gaspard nessa praia da Bretanha, nas férias de verão (na praia, aliás, Gaspard é uma triste figura).
Os pensamentos de Gaspard estão todos voltados para Lena, sua inconstante namorada. Estarão mesmo? "Conto de Verão" é um filme de Eric Rohmer, portanto tudo se passa entre o ser e o não-ser, o desejar e o não-desejar. Gaspard procura sem saber que procura (o que ou a quem).
Pode ser Lena, que combinou encontrá-lo e nunca aparece. Mas pode também ser Solène, garota impulsiva, de beleza evidente, talvez evidente demais, que também se encanta por Gaspard.
De imediato torcemos por Margot. Mas Margot não ajuda muito. Etnóloga e garçonete numa creperie, ela se propõe a Gaspard como amiga. Seu namorado existe: é etnólogo também, está há meses longe e assim permanecerá.
"Conto de Verão" é, em suma, mais um filme de Eric Rohmer e nele acompanhamos a circulação de Gaspard entre essas três mulheres, enquanto se dedica à composição -ele é músico.
É mais uma história da série "Contos das Quatro Estações", em que a natureza dá o tom, com suas transformações de luz e atmosfera. É previsível, como Rohmer nos acostumou -em sua obra quase tudo se ordena em séries ("Contos Morais").
Seus filmes não são, em definitivo, para quem busca carrosséis de acontecimentos. "Conto de Verão" é mais uma dessas histórias sem história: nada, ou quase, acontece. Ao olhar desavisado. Pois tudo acontece: paixões, desencantos, ciúmes e uma busca.
Tudo isso, porém, irrompe de maneira quase subterrânea. Como se a vida, a exemplo das séries rohmerianas, devesse obedecer a princípios e a uma certa previsibilidade ditada pela razão, pela crença ou pela moral.
Mas há nesses personagens algo que escapa ao seu controle -uma distância sutil entre o que são e o que falam. Daí seu cinema ser tão falado e tão cinematográfico: se não fossem filmadas, essas falas sofreriam de falta de imagens. Elas é que nos trazem as hesitações, as expressões de corpo, os olhares ambíguos -enfim, tudo isso que desmente o que se fala sem desmentir de todo.
Sim, é um cinema de imagens simples, tão diretas que parecem quase simplórias ao olhar desavisado, acostumado a crer naquilo que os personagens de cinema (ou da vida real, tanto faz) dizem. Mas como as imagens desdizem o que é dito, impõe-se pensar se simplórios não seríamos nós.
É difícil admitir uma coisa dessas. Talvez por isso quase ninguém goste de imediato dos filmes de Rohmer. E quase todos os amem ao vê-los pela terceira ou quarta vez. Compreendemos aí que até então não víamos de verdade seus filmes, que não tínhamos olhos nem ouvidos para apreciar essa modulação sutil. Assim como Gaspard neste "Conto de Verão", aprenderemos então que nada, às vezes, é menos evidente do que a evidência.


Conto de Verão
Conte d'Été
    
Produção: França, 1996
Direção: Eric Rohmer
Com: Melvil Poupaud, Amanda Langlet, Gwenaëlle Simon e Aurelia Nolin
Quando: a partir de hoje no Top Cine 2



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