São Paulo, sábado, 09 de maio de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Peckett, o boeta


Para além do voyeurismo, reunião de cartas do jovem Samuel Beckett conta história de formação estética


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

A REPERCUSSÃO da recém-publicada correspondência do jovem Beckett, selecionada e anotada por Martha Fehsenfeld e Lois Overbeck (o primeiro de quatro volumes previstos), vai além do voyeurismo biográfico, ainda que, mesmo neste aspecto, o que ela ofereça seja mais do que glacê para tolos. Cheia de arestas, a relação do autor de "Molloy" com a universidade, os pais, a Irlanda e a França, os críticos e os editores, por exemplo, importa, e muito, aos rumos que uma obra tão singular como a sua tomou. E suas razões saem, de fato, menos chapadas e unilaterais do garimpo de seu próprio testemunho direto.
O que encontrará, por exemplo, alguém que escolha iluminar pela correspondência o episódio de 6 de janeiro de 1938? Neste dia, saindo de um café parisiense, Beckett e amigos envolveram-se num bate-boca com um mendigo exaltado, e o irlandês levou a pior: esfaqueado, sofreu uma perfuração da pleura e foi internado às pressas.
O "drama noturno" do ainda pouco conhecido "Sr Peckett" foi notícia no "L'Humanité" e no "Figaro", assim mesmo, com a letra "b" inicial trocada pelo "p". Se a vítima deixou bem, dias depois, o hospital, o mito entre seus leitores é que a violência e gratuidade do ato não abandonaram tão cedo o autor.
Pois, na véspera, Beckett escreveu a seu amigo mais próximo, o crítico, poeta e historiador da arte irlandês Thomas McGreevy. Na carta, transcreve, a pedido de McGreevy, um poema escrito por Charles 9º, comparando o peso da sua coroa, a de França, a outra, de louros, levada por Ronsard, e descreve uma semana agitada, incluindo encomendas de Joyce (um texto crítico anônimo sobre o "Finnegans Wake" a caminho) e os preparativos de Peggy Guggenheim para abrir uma galeria (Cocteau, Kandinsky, Arp e Geer van Velde, no cardápio), além de um primeiro encontro com Hemingway. De passagem, anota ainda uma carta afetuosa da mãe -afeição mantida à distância comemorada de um Canal- e a chegada de dois pacotes de livros, vindos de Munique: as obras de Kant, completas.
Mais que este aspecto de crônica, curioso em si, já que tratam de gente e tempos interessantes, estas cartas desdobram, dia a dia, os episódios de um teatro mental: a história da formação estética de Beckett, desdobrada em respostas específicas a inúmeros filósofos, músicos, poetas, pintores e romancistas.
Não encontramos nelas apenas o que já sabíamos (o peso das leituras de Dante, Shakespeare, Racine sobre Beckett), mas um conjunto de experiências singulares que formaram uma inteligência criadora e crítica, excepcional, expressa com a agudeza, economia e sinceridade que a natureza da carta facilita e seu gênio verbal buscou, sem descanso ou firulas, capturar.


THE LETTERS OF SAMUEL BECKETT: VOLUME 1 (1929-1940)

Organizadores: Martha Dow Fehsenfeld e Lois More Overbeck
Editora: Cambridge University Press
Quanto: R$ 148,50, em média (882 págs.; importado)
Avaliação: ótimo




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