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CONTARDO CALLIGARIS
O sociopata, nosso vizinho
Na semana passada, cheguei
de volta a São Paulo vindo
de Nova York. Todos de pé nos
corredores da aeronave, esperávamos a abertura das portas. Eis
que um jovem, que estava atrás
de mim, disse, num inglês duvidoso, "Excuse me" e tentou me ultrapassar, para ele (só ele) avançar na fila.
Fiz notar ao jovem que todos estávamos parados e indo para o
mesmo lugar. Minha observação
não produziu nele nenhuma vergonha: empurrou e se insinuou
na minha frente, para repetir a
mesma manobra com outros passageiros. Comentei com minha
companheira: "É incrível como
existem sociopatas".
Justiça divina: na fila da alfândega, o jovem estava bem atrás
da gente. Resta explicar meu
"diagnóstico".
Sumariamente, o quadro da sociopatia (ou psicopatia, como dizia a psiquiatria clássica) é o seguinte: incapacidade de se conformar às normas sociais, aptidão
para enganar e manipular, falta
de preocupação com os outros,
falta de remorso e de sentimento
de responsabilidade.
Ocasionalmente, qualquer um é
capaz de comportamentos desse
tipo. Mas o sociopata os adota como sua única maneira de ser e de
se relacionar com o mundo: ele se
impõe na vida desrespeitando os
outros e as normas coletivas sem
sentir culpa alguma.
Os sociopatas não são necessariamente criminosos, e nem todos
os criminosos são sociopatas. O
membro de uma gangue pode
agir como um sociopata entre
nós, mas sentir-se responsável pela segurança dos outros membros
da gangue e culpado por falhar
em suas tarefas. Inversamente,
um cidadão-modelo, de grande
êxito profissional e social, pode
dever seu sucesso a uma boa sociopatia. Detalhe: os sociopatas
são numerosos; nos EUA, 4% da
população.
Num livro recente, "The Sociopath Next Door" (o sociopata da
casa ao lado), publicado pela
Broadway Books, a psicóloga
Martha Stout propõe uma interpretação valiosa da personalidade do sociopata.
O pressuposto, com o qual todos
concordam, é que o sociopata sabe fazer a diferença entre o bem e
o mal, mas, ao optar pelo mal,
não conhece remorso ou culpa,
pois não tem consciência moral.
Ora, em psicopatologia, ter
consciência moral é uma qualidade problemática, pois uma boa
parte do sofrimento neurótico é
devida ao excesso de interdições
auto-impostas e de culpas desnecessárias. Alguns diriam que um
pouco de sociopatia ajudaria nossos neuróticos.
O problema, observa Stout, é
que sobretudo os psicanalistas
confundem a consciência moral
com o superego, ou seja, com a
instância psíquica herdeira das
interdições que foram decisivas
na formação do sujeito, desde a
proibição de dormir com a mãe
até a proibição de fazer cocô nas
calças. A consciência moral aparece assim como uma guardiã encarregada de nos impor limites,
dos quais o sociopata zombaria e
com os quais o neurótico infernizaria a própria vida.
Ora, Stout propõe conceber a
consciência moral de um jeito diferente: não como fonte das interdições que nos constrangem, mas
como tesouro das condições que
permitem nossos laços afetivos,
ou seja, a consciência moral seria
constituída pelas obrigações que
acompanham nossos sentimentos
positivos pelos outros.
Se não mato, roubo, prevarico,
não é porque obedeço a prescrições estabelecidas, mas é pelo vínculo afetivo que me liga aos outros que respeito e amo. Ajo corretamente porque desejo poupá-los
dos desgostos que minha conduta
imoral lhes acarretaria.
Na visão de Stout, o sociopata é,
antes de mais nada, um sujeito
que não consegue estabelecer laços afetivos: ele não conhece obrigações morais porque não sabe se
juntar aos outros pelo respeito,
pela amizade ou pelo amor.
De fato, várias pesquisas mostram que as pessoas "normais"
reagem de maneira diferenciada
a palavras carregadas de emoção.
Diante de palavras como "amor",
"ódio", "dor", "felicidade",
"mãe", a atividade cerebral dos
"normais" é mais intensa e mais
rápida do que diante de palavras
neutras, como "mesa", "cadeira",
"número 15". Os sociopatas, ao
contrário, apresentam a mesma
intensidade e o mesmo tempo de
reação em ambos os casos. Seu
déficit é afetivo, e sua falha moral
é conseqüência desse déficit.
O jovem passageiro que descrevi
foi capaz de uma pequena sociopatia porque não reconheceu seus
companheiros de viagem como
um grupo do qual ele fazia parte.
O uso do inglês talvez lhe tenha
permitido sentir-se estrangeiro a
essa mínima simpatia coletiva.
Nestes dias, o noticiário fala de
uma sociopatia generalizada no
coração das instituições republicanas. De acordo com a proposta
de Stout, ela é efeito não de alguma fraqueza dos grandes princípios, mas da falta de um "nós", ou
seja, de um laço coletivo nacional,
em que o companheirismo e o
sentimento de um destino comum implicariam um respeito
recíproco básico.
Notas:
1) Acabo de ler o novo livro de
Flávio Gikovate, "O Mal, o Bem e
Mais Além" (MG editores). Gikovate situa a moralidade de uma
maneira análoga à escolhida por
Stout: o que nos torna sujeitos
morais é nossa capacidade de
amar.
2) Assisti, com atraso, a "A Queda! As Últimas Horas de Hitler".
O Hitler do filme de Hirschbiegel,
magistralmente interpretado por
Bruno Ganz, é um sociopata perfeito.
@ - ccalligari@uol.com.br
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