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Endurecer sem perder a ternura. Jamais?
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Trinta anos este ano. Quatro
biografias na França, duas no
Brasil, Che Guevara volta ao
centro do debate. Dois mexicanos, Jorge G. Castañeda e Paco
Ignacio Taibo II, um francês,
Pierre Kalfon, e o norte-americano Jon Lee Anderson pesquisaram a vida do Che e trazem
em um só mês um volume de
informações sobre ela maior
do que tivemos numa década
inteira.
Paco Ignacio Taibo e Castañeda, a julgar pelas referências
do primeiro, chegaram a discutir seu trabalho, divergindo
em alguns pontos. Mas isso decorre dos horizontes políticos
distintos com que encaram a
trajetória do grande mito revolucionário desse fim de século.
Castañeda, cujo livro está
sendo lançado no Brasil, pouco depois da aparição do Che
Guevara de Jon Lee Anderson,
conseguiu acesso aos arquivos
da ex-União Soviética e obteve
neles uma visão mais complexa das relações entre Che Guevara e Fidel, no momento em
que se implantava a guerrilha
na Bolívia.
Aos quatro livros, podem se
acrescentar ainda as memórias de Regis Debray, "Loués
Soient Nos Seigneurs", lançado pela Gallimard. Debray viveu a experiência boliviana ao
lado de Che e, apesar de algumas críticas, revela sua admiração pelo líder numa frase retomada por Paco Ignacio Taibo: ele tinha um brilho tão resplandescente que iluminava
mesmo os mais opacos que entravam em contato com ele.
Partindo da própria teoria
de guerrilha do Che, em certos
momentos, Debray se assusta
com a pressa do homem que
queria criar muitos Vietnãs. A
aventura no Congo, por exemplo, foi prematura e sem preparação.
Paco Ignacio Taibo aborda o
mesmo tema com uma simples
observação: Che andava com
as botas desamarradas como
se não tivesse nem paciência
ao se levantar da cama.
Mergulho no livro de Debray
em busca de algumas respostas. Há que endurecer sem perder a ternura, essa frase de Che
Guevara, resolvendo com palavras uma difícil contradição
do mundo real, tem correspondência com a vida de seu autor.
Em certos momentos na Bolívia, com sua pequena cansada,
ferida, desmoralizada pela
diarréia, Che Guevara foi duro
com um subcomandante e com
um camponês que aderiu à
guerrilha. Nos últimos dias parecia obcecado e sobretudo em
conflito com sua célebre frase.
Castañeda deve trazer mais
dados sobre as hesitações de
Fidel em apoiar a guerrilha na
Bolívia. Debray, que conheceu
bem os dois, dedica muitos parágrafos para comparar Fidel e
Che, o shogun e o samurai, o
político realista e o místico.
- Se é verdade que um projeto político tem a ida de seus
instrumentos e não a de seus
objetivos, o nosso datava de
1848.
Por falta de enraizamento
entre os indígenas, pela origem
estudantil e urbana de seus
quadros, a guerrilha na Bolívia correu risco de estimular a
formação de grupos armados
cortados do povo, um certo
banditismo. Para além da exploração comercial, da venda
de camisetas e bonés, este trigésimo ano pode ser um grande avanço na compreensão da
vida de Che Guevara, que ressurge das cinzas num mundo
em que não se joga mais em
grandes idéias em vida.
Debray, como Doris Lessing,
trata suas memórias sem nenhum humor, o que talvez nos
faz, de uma certa forma, nos
entristecermos com a experiência boliviana. Mas apenas escreveu memórias e, no fundo,
estimula a busca das biografias dos historiadores:
"Sem dúvida a história não é
a memória, mas a crítica da
memória, sem a qual os memorialistas ocupariam o lugar dos
historiadores. O profissional
está lá para desmontar a armadilha da memória e desfazer as mentiras das lembranças".
Mas essa combinação das
memórias áridas de Regis Debray com mais três livros sobre
Che Guevara é um bom roteiro
para os 30 anos, momento de
perguntarmos o que significa
Che Guevara num mundo esvaziado de política e orientado
para a liberdade individual.
Quem são esses motociclistas
com blusão de couro que nos
ultrapassam na estrada? Cruzam a América Latina? Para
quê? Há Ches sendo plasmados
em nossas escolas de medicina,
ou tudo já passou e estamos
condenados a celebrar sua vida todos os anos, como se fosse
dia de São Cosme e Damião ou
da Proclamação da República?
Debray é incisivo. Antigamente se lia, hoje se vê. As
guerrilhas foram um assalto
da cultura urbana sobre a
camponesa, da cultura escrita
sobre a oral. Trata-se de um
tempo concluído, uma espécie
de relíquia no mundo virtual.
Para os jovens que estão no
computador vendo seus
CD-ROMs, Debray teme ter o
efeito de um dinossauro passeando entre os mamíferos,
uma espécie de distração darwiniana.
Ainda assim, por que o inabalável fascínio de Che? Ou a
permanência desse desejo de
uma vontade autônoma,
alheia às asperezas do real? A
condição prévia para a guerrilha é a decisão de fazer a guerrilha; e pa'el carajo.
O marco dos 30 anos talvez
possa ser o primeiro momento
em que se discute a vida de
Che, suas experiências na economia cubana, a visão do homem novo, um pouco mais distante das emoções provocadas
pela sua morte -as mãos cortadas de um corpo rodeado pelos executores como uma patética lição de autonomia.
Che morreu numa Bolívia
que escolheu agora um ditador
militar para presidente e combateu no Congo, ao lado de
Laurent Kabila, que acaba de
chegar ao poder. O século 20
ainda nos reserva suas delicadas surpresas.
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