São Paulo, segunda, 9 de junho de 1997.



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Endurecer sem perder a ternura. Jamais?

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Trinta anos este ano. Quatro biografias na França, duas no Brasil, Che Guevara volta ao centro do debate. Dois mexicanos, Jorge G. Castañeda e Paco Ignacio Taibo II, um francês, Pierre Kalfon, e o norte-americano Jon Lee Anderson pesquisaram a vida do Che e trazem em um só mês um volume de informações sobre ela maior do que tivemos numa década inteira.
Paco Ignacio Taibo e Castañeda, a julgar pelas referências do primeiro, chegaram a discutir seu trabalho, divergindo em alguns pontos. Mas isso decorre dos horizontes políticos distintos com que encaram a trajetória do grande mito revolucionário desse fim de século.
Castañeda, cujo livro está sendo lançado no Brasil, pouco depois da aparição do Che Guevara de Jon Lee Anderson, conseguiu acesso aos arquivos da ex-União Soviética e obteve neles uma visão mais complexa das relações entre Che Guevara e Fidel, no momento em que se implantava a guerrilha na Bolívia.
Aos quatro livros, podem se acrescentar ainda as memórias de Regis Debray, "Loués Soient Nos Seigneurs", lançado pela Gallimard. Debray viveu a experiência boliviana ao lado de Che e, apesar de algumas críticas, revela sua admiração pelo líder numa frase retomada por Paco Ignacio Taibo: ele tinha um brilho tão resplandescente que iluminava mesmo os mais opacos que entravam em contato com ele.
Partindo da própria teoria de guerrilha do Che, em certos momentos, Debray se assusta com a pressa do homem que queria criar muitos Vietnãs. A aventura no Congo, por exemplo, foi prematura e sem preparação.
Paco Ignacio Taibo aborda o mesmo tema com uma simples observação: Che andava com as botas desamarradas como se não tivesse nem paciência ao se levantar da cama.
Mergulho no livro de Debray em busca de algumas respostas. Há que endurecer sem perder a ternura, essa frase de Che Guevara, resolvendo com palavras uma difícil contradição do mundo real, tem correspondência com a vida de seu autor.
Em certos momentos na Bolívia, com sua pequena cansada, ferida, desmoralizada pela diarréia, Che Guevara foi duro com um subcomandante e com um camponês que aderiu à guerrilha. Nos últimos dias parecia obcecado e sobretudo em conflito com sua célebre frase.
Castañeda deve trazer mais dados sobre as hesitações de Fidel em apoiar a guerrilha na Bolívia. Debray, que conheceu bem os dois, dedica muitos parágrafos para comparar Fidel e Che, o shogun e o samurai, o político realista e o místico.
- Se é verdade que um projeto político tem a ida de seus instrumentos e não a de seus objetivos, o nosso datava de 1848.
Por falta de enraizamento entre os indígenas, pela origem estudantil e urbana de seus quadros, a guerrilha na Bolívia correu risco de estimular a formação de grupos armados cortados do povo, um certo banditismo. Para além da exploração comercial, da venda de camisetas e bonés, este trigésimo ano pode ser um grande avanço na compreensão da vida de Che Guevara, que ressurge das cinzas num mundo em que não se joga mais em grandes idéias em vida.
Debray, como Doris Lessing, trata suas memórias sem nenhum humor, o que talvez nos faz, de uma certa forma, nos entristecermos com a experiência boliviana. Mas apenas escreveu memórias e, no fundo, estimula a busca das biografias dos historiadores:
"Sem dúvida a história não é a memória, mas a crítica da memória, sem a qual os memorialistas ocupariam o lugar dos historiadores. O profissional está lá para desmontar a armadilha da memória e desfazer as mentiras das lembranças".
Mas essa combinação das memórias áridas de Regis Debray com mais três livros sobre Che Guevara é um bom roteiro para os 30 anos, momento de perguntarmos o que significa Che Guevara num mundo esvaziado de política e orientado para a liberdade individual.
Quem são esses motociclistas com blusão de couro que nos ultrapassam na estrada? Cruzam a América Latina? Para quê? Há Ches sendo plasmados em nossas escolas de medicina, ou tudo já passou e estamos condenados a celebrar sua vida todos os anos, como se fosse dia de São Cosme e Damião ou da Proclamação da República?
Debray é incisivo. Antigamente se lia, hoje se vê. As guerrilhas foram um assalto da cultura urbana sobre a camponesa, da cultura escrita sobre a oral. Trata-se de um tempo concluído, uma espécie de relíquia no mundo virtual.
Para os jovens que estão no computador vendo seus CD-ROMs, Debray teme ter o efeito de um dinossauro passeando entre os mamíferos, uma espécie de distração darwiniana.
Ainda assim, por que o inabalável fascínio de Che? Ou a permanência desse desejo de uma vontade autônoma, alheia às asperezas do real? A condição prévia para a guerrilha é a decisão de fazer a guerrilha; e pa'el carajo.
O marco dos 30 anos talvez possa ser o primeiro momento em que se discute a vida de Che, suas experiências na economia cubana, a visão do homem novo, um pouco mais distante das emoções provocadas pela sua morte -as mãos cortadas de um corpo rodeado pelos executores como uma patética lição de autonomia.
Che morreu numa Bolívia que escolheu agora um ditador militar para presidente e combateu no Congo, ao lado de Laurent Kabila, que acaba de chegar ao poder. O século 20 ainda nos reserva suas delicadas surpresas.






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