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CONTARDO CALLIGARIS
Antonioni
Com ele, aprendi que, no amor, é bom não confundir verborragia com comunicação
DOIS ANOS atrás, assisti a
"Eros", filme em três episódios de diretores diferentes:
Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai.
Quase saí bem antes do fim.
"Eros" começa com o episódio de
Antonioni, que me pareceu de uma
mediocridade constrangedora: os
atores estão perdidos no set, as legendas são preferíveis aos diálogos
e, como se não bastasse, há uma série de estereótipos intoleráveis.
Uma mulher nua em cima de um
cavalo é uma metáfora erótica tão
defunta que só deveria ser utilizada
como farsa (exemplo de uma boa
farsa: o nado sincronizado à la
Esther Williams na cena primorosa
dos Oompa-Loompas no lago da
"Fantástica Fábrica de Chocolate"
de Tim Burton).
Enfim, por sorte ou obstinação,
agüentei firme e fui recompensado
pelo episódio de Kar-wai, que é uma
obra-prima.
A razão de meu constrangimento
era simples: a obra de Antonioni,
que morreu na semana passada, aos
94 anos, é das que mais me tocaram
e me formaram. Deparar-me com
um filme medíocre e assinado por
ele (embora, presumivelmente, orquestrado por outros) forçava-me a
interrogar o passado: o que eu acharia, hoje, dos filmes de Antonioni de
30 ou 40 anos atrás?
Decidi revê-los. Foi uma aventura
de várias noites, que recomendo a
todos: únicos e inconfundíveis, os
filmes de Antonioni não envelheceram. Sua obra, além de ser cinematograficamente genial, continua valendo como uma extraordinária
educação sentimental.
Em matéria de educação sentimental, aliás, ela só compete com a
obra de Ingmar Bergman, que também acaba de perder seu jogo de xadrez com a morte. Antonioni e Bergman têm em comum um respeito
extremo pela intimidade humana.
Talvez seja porque ambos tiveram
que redescobrir a dignidade da vida
depois da grande "aventura" coletiva da Segunda Guerra e a redescobriram na trama dos sentimentos.
Meus Antonionis preferidos se dividem em dois blocos. O primeiro
inclui "A Aventura" (1960), "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1962) e foi
chamado, na época, de "Trilogia da
Incomunicabilidade". Nunca entendi por quê. Continuo não entendendo. Os personagens de Antonioni só
podem parecer pouco comunicativos aos olhos de uma cultura que
confunda a verborragia com a comunicação, o falar com o dizer.
Tome "A Noite": poucos filmes ou
livros nos dizem de maneira tão
simples e correta o que é um casal e o
que é um amor. E poucos amantes,
cinematográficos ou literários, conseguem, como Giovanni (Marcello
Mastroianni) e Lidia (Jeanne
Moreau), em "A Noite", dizer tudo o
que é preciso e NADA MAIS.
Com Antonioni, aprendi que há
uma ética da troca amorosa. Por
exemplo, num momento do filme,
Lidia some pelas ruas de Milão, durante uma tarde inteira. Quando,
enfim, ela se manifesta com um telefonema, a discrição de Giovanni não
é um drama da "incomunicabilidade", é a reserva de quem, no amor,
preserva o respeito pela complexidade do outro.
O cinema é uma boa parte de nosso repertório amoroso. Pois bem, no
amor, como num set de filmagem, é
necessário, de vez em quando, avisar: "Silêncio! Ação!". Qualquer casal, em crise ou não, que seja tentado
pela idéia de sentar e "discutir a relação" poderia (com bastante proveito) sentar e assistir à "Noite".
Meus outros Antonionis preferidos são "Blow Up", de 1966, (misteriosamente traduzido como "Depois
Daquele Beijo") e "Profissão: Repórter", de 1975. Esses dois filmes foram a melhor resposta que minha
geração recebeu a seus anseios vagos e frustrados por uma "outra" vida, diferente da mesmice acomodada que receávamos para o futuro.
"Goldfinger", o primeiro James
Bond com Sean Connery, saiu em
1964, dois anos antes de "Blow Up".
"Goldfinger" é o exemplo perfeito da
resposta padrão à nossa questão
adolescente: podem sonhar todos
com a fabulosa vida de agentes secretos, criminosos, detetives e por aí
vai. Pistola por pistola, dez anos depois, alguns, inspirados pela mesma
proposta hollywoodiana, caíram na
clandestinidade armada.
A resposta de Antonioni é mais sutil e diz que, claro, não é possível romancear a vida sem "ser outro constantemente" (a frase é de Fernando
Pessoa, mas é também o recado de
"Profissão: Repórter"). Agora, para
romancear a vida, não é preciso encontrar destinos grandiosos. Basta
enxergar o detalhe que sempre está
presente num canto escuro da realidade cotidiana, ao alcance de uma
ampliação fotográfica.
ccalligari@uol.com.br
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