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Era uma vez na América
Paul Auster mistura clássicos do cinema e política
dos EUA em seu novo romance, "Homem no Escuro"
Ander Gillenea - 23.set.2007/Getty Images
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O escritor norte-americano Paul Auster
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
Poucos filmes são mais profundos e contundentes, além
de simples e transparentes, do
que o clássico "Era uma Vez em
Tóquio" (1953), de Yasujiro
Ozu, para mostrar momentos
devastadores de verdade, grandeza e tristeza nos sentimentos
familiares represados.
Não é pouca coisa, portanto,
que esse filme seja tema e uma
das chaves para a trama do último romance do americano
Paul Auster, "Homem no Escuro", em que um crítico literário
septuagenário amarga noites
de insônia, recobrando-se de
um acidente, amparado pela filha e pela neta. Os três têm suas
vidas despedaçadas pela culpa e
pela perda dos cônjuges.
Isso é metade do livro. A outra é a representação de um
EUA em guerra civil, uma secessão em pleno século 21 causada pelo governo Bush, que levou a América para um mundo
paralelo de pesadelo, para os
atentados do 11 de Setembro e
para a Guerra do Iraque, causa
da morte bárbara de um dos
personagens. Auster já tinha se
inspirado na política americana em seus últimos livros, mas
não de maneira tão explícita.
É uma aposta arriscada do
autor. O livro, ainda inédito nos
EUA, não será considerado
mais um fracasso entre os livros inspirados no 11 de Setembro? Essa onda já varreu nomes
importantes da literatura americana, como Don DeLillo, que
naufragou com "Homem em
Queda" (Cia. das Letras).
"Não tenho receio. Senti que
precisava escrever sobre isso.
Não tinha escolha", disse Auster à Folha. "Não temos tido
bons momentos nos EUA, posso garantir." Na entrevista a seguir, ele diz que "reza" para que
Barack Obama seja eleito, fala
de suas inspirações, aborda filmes citados no romance e comenta sua própria carreira cinematográfica -que não tem o
menor potencial comercial, fala, dando gargalhadas.
FOLHA - Muitos autores fracassaram ao abordar o 11 de Setembro e
suas conseqüências. Você não tem
receio da crítica nos EUA?
PAUL AUSTER - Não tenho receio.
Senti que precisava escrever
sobre isso. Não tinha escolha. É
uma coisa que ardia em mim. E
o livro também trata de várias
outras coisas, além de política.
É uma obra íntima, sobre família, casamentos, filhos. É um
homem deitado no escuro, com
muitos arrependimentos. Está
tentando sobreviver às suas
noites, chegar ao café-da-manhã, o que consegue, no final.
FOLHA - O livro é dedicado a David
Grossman, escritor israelense que
perdeu o filho na Guerra do Líbano.
Foi uma inspiração?
AUSTER - Muitas coisas me levaram a escrever o livro. David
foi uma delas. É um amigo próximo, conhecia seu filho muito
bem. Foi uma experiência muito difícil e chocante. Foi a primeiro pessoa que conheci que
tinha perdido o filho em uma
guerra. Isso vem me perturbando muito.
FOLHA - E a Guerra do Iraque e a
política americana...
AUSTER - Uma das principais
inspirações foi meu desespero
em relação às eleições de 2000
nos EUA, quando Al Gore venceu e, por causa de manipulações legais e políticas, os republicanos roubaram a eleição.
Desde então tenho a sensação
de que vivemos em um mundo
paralelo, que não é mais real.
No mundo real Al Gore seria o
presidente, não teria acontecido a Guerra do Iraque e, possivelmente, não teria existido o
11 de Setembro. Tudo o que
veio desde então é um sonho.
FOLHA - Não é uma visão muito
sombria e pessimista dos EUA?
AUSTER - Não temos tido bons
momentos nos EUA. Tem sido
uma época muito difícil, posso
garantir. Problemas que não
existiam antes têm aparecido.
Seja lá quem for se eleger, e rezo para que seja [Barack] Obama, a maior parte do trabalho
do novo presidente vai ser desfazer tudo o que tem sido feito
de ruim pelo governo Bush.
FOLHA - É possível comparar os
anos Bush com a Guerra do Vietnã?
AUSTER - São bem diferentes. A
Guerra do Vietnã foi uma guerra maior, muito mais gente
morreu, havia muito mais soldados lá. E, claro, havia a questão do alistamento militar obrigatório para os jovens, eu era
um deles. Aquela época se tornou muito agitada. Em comparação com 1968, há 40 anos, as
coisas estão muito mais quietas
nos EUA. O nível de protesto é
tão pequeno... As pessoas estão
sofrendo quietas. Os americanos não suportam a idéia de
tortura, de não respeitar a Convenção de Genebra.
FOLHA - Você já tinha criado uma
distopia em "No País das Últimas
Coisas"...
AUSTER - Não diria que "Homem no Escuro" seja uma distopia, trata-se de um mundo
imaginário em que uma guerra
civil está em curso. As coisas estão funcionando relativamente
bem, as pessoas nas cidades estão vivendo e comendo, a vida
continua, mas há uma guerra.
FOLHA - Ozu, cineasta que lida com
valores familiares, parece uma grande inspiração...
AUSTER - Filmes são uma chave
para o livro. Katya [neta do narrador] é uma estudante de cinema e passa muito tempo na casa assistindo a filmes. Logo no
começo, discute três filmes
com ele: "A Grande Ilusão"
(37), de Jean Renoir; "Ladrões
de Bicicletas" (48), de Vittorio
de Sica; e "O Mundo de Apu"
(59), de Satyajit Ray. Três filmes brilhantes. Os dois discutem como diretores podem
usar objetos inanimados para
discutir emoções humanas. São
histórias muito íntimas, familiares, a rigor. E há o filme de
Ozu ("Era uma Vez em Tóquio"), que é diretamente sobre
família. A discussão sobre filmes prepara a grande conversa
do final entre Katya e o avô.
FOLHA - Por que o livro foi lançado
primeiro na Dinamarca?
AUSTER - Sempre publico na
Dinamarca primeiro. Tenho
um acordo com minha editora
lá, que quase precisou fechar. É
um gesto de amizade. Na Holanda foi lançado em junho, pelas mesmas razões. Mas não
saiu em mais nenhum lugar.
Nos EUA sai em 19 de agosto.
Em vários países europeus sai
em setembro.
FOLHA - Como foi a experiência de
filmar em Portugal seu último longa
("Kimera - Estranha Sedução")?
AUSTER - Gostei muito. Foi
muito feliz. É um filme tão pequeno e estranho. Foi lançado
em poucos países. O distribuidor nos EUA disse: "Adorei, é
original, cativante, mas não
tem o menor potencial comercial. Zero. Se você quiser, podemos distribuir, mas não tenha
esperanças..." E foi exatamente
o que aconteceu. Ou seja, quase
nada... [risos]
FOLHA - Pretende dirigir de novo?
AUSTER - Não sei. Não tenho
projetos. Estou escrevendo outro romance, mas não posso falar sobre ele. Se tiver idéia para
outro filme, posso fazer. Mas
todos os cineastas independentes estão com dificuldades neste momento. Encontrei no último Festival de San Sebastián
dois americanos admiráveis,
Wayne Wang, com quem já filmei, e John Sayles. Os dois foram pioneiros do movimento
do cinema independente, nos
anos 80. Ganham prêmios, mas
disseram que não conseguem
distribuição nos EUA. Isto é
triste, não é mesmo?
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