São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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Era uma vez na América

Paul Auster mistura clássicos do cinema e política dos EUA em seu novo romance, "Homem no Escuro"

Ander Gillenea - 23.set.2007/Getty Images
O escritor norte-americano Paul Auster

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Poucos filmes são mais profundos e contundentes, além de simples e transparentes, do que o clássico "Era uma Vez em Tóquio" (1953), de Yasujiro Ozu, para mostrar momentos devastadores de verdade, grandeza e tristeza nos sentimentos familiares represados. Não é pouca coisa, portanto, que esse filme seja tema e uma das chaves para a trama do último romance do americano Paul Auster, "Homem no Escuro", em que um crítico literário septuagenário amarga noites de insônia, recobrando-se de um acidente, amparado pela filha e pela neta. Os três têm suas vidas despedaçadas pela culpa e pela perda dos cônjuges. Isso é metade do livro. A outra é a representação de um EUA em guerra civil, uma secessão em pleno século 21 causada pelo governo Bush, que levou a América para um mundo paralelo de pesadelo, para os atentados do 11 de Setembro e para a Guerra do Iraque, causa da morte bárbara de um dos personagens. Auster já tinha se inspirado na política americana em seus últimos livros, mas não de maneira tão explícita. É uma aposta arriscada do autor. O livro, ainda inédito nos EUA, não será considerado mais um fracasso entre os livros inspirados no 11 de Setembro? Essa onda já varreu nomes importantes da literatura americana, como Don DeLillo, que naufragou com "Homem em Queda" (Cia. das Letras). "Não tenho receio. Senti que precisava escrever sobre isso. Não tinha escolha", disse Auster à Folha. "Não temos tido bons momentos nos EUA, posso garantir." Na entrevista a seguir, ele diz que "reza" para que Barack Obama seja eleito, fala de suas inspirações, aborda filmes citados no romance e comenta sua própria carreira cinematográfica -que não tem o menor potencial comercial, fala, dando gargalhadas.

 

FOLHA - Muitos autores fracassaram ao abordar o 11 de Setembro e suas conseqüências. Você não tem receio da crítica nos EUA?
PAUL AUSTER
- Não tenho receio. Senti que precisava escrever sobre isso. Não tinha escolha. É uma coisa que ardia em mim. E o livro também trata de várias outras coisas, além de política. É uma obra íntima, sobre família, casamentos, filhos. É um homem deitado no escuro, com muitos arrependimentos. Está tentando sobreviver às suas noites, chegar ao café-da-manhã, o que consegue, no final.

FOLHA - O livro é dedicado a David Grossman, escritor israelense que perdeu o filho na Guerra do Líbano. Foi uma inspiração?
AUSTER
- Muitas coisas me levaram a escrever o livro. David foi uma delas. É um amigo próximo, conhecia seu filho muito bem. Foi uma experiência muito difícil e chocante. Foi a primeiro pessoa que conheci que tinha perdido o filho em uma guerra. Isso vem me perturbando muito.

FOLHA - E a Guerra do Iraque e a política americana...
AUSTER
- Uma das principais inspirações foi meu desespero em relação às eleições de 2000 nos EUA, quando Al Gore venceu e, por causa de manipulações legais e políticas, os republicanos roubaram a eleição. Desde então tenho a sensação de que vivemos em um mundo paralelo, que não é mais real. No mundo real Al Gore seria o presidente, não teria acontecido a Guerra do Iraque e, possivelmente, não teria existido o 11 de Setembro. Tudo o que veio desde então é um sonho.

FOLHA - Não é uma visão muito sombria e pessimista dos EUA?
AUSTER
- Não temos tido bons momentos nos EUA. Tem sido uma época muito difícil, posso garantir. Problemas que não existiam antes têm aparecido. Seja lá quem for se eleger, e rezo para que seja [Barack] Obama, a maior parte do trabalho do novo presidente vai ser desfazer tudo o que tem sido feito de ruim pelo governo Bush.

FOLHA - É possível comparar os anos Bush com a Guerra do Vietnã?
AUSTER
- São bem diferentes. A Guerra do Vietnã foi uma guerra maior, muito mais gente morreu, havia muito mais soldados lá. E, claro, havia a questão do alistamento militar obrigatório para os jovens, eu era um deles. Aquela época se tornou muito agitada. Em comparação com 1968, há 40 anos, as coisas estão muito mais quietas nos EUA. O nível de protesto é tão pequeno... As pessoas estão sofrendo quietas. Os americanos não suportam a idéia de tortura, de não respeitar a Convenção de Genebra.

FOLHA - Você já tinha criado uma distopia em "No País das Últimas Coisas"...
AUSTER
- Não diria que "Homem no Escuro" seja uma distopia, trata-se de um mundo imaginário em que uma guerra civil está em curso. As coisas estão funcionando relativamente bem, as pessoas nas cidades estão vivendo e comendo, a vida continua, mas há uma guerra.

FOLHA - Ozu, cineasta que lida com valores familiares, parece uma grande inspiração...
AUSTER
- Filmes são uma chave para o livro. Katya [neta do narrador] é uma estudante de cinema e passa muito tempo na casa assistindo a filmes. Logo no começo, discute três filmes com ele: "A Grande Ilusão" (37), de Jean Renoir; "Ladrões de Bicicletas" (48), de Vittorio de Sica; e "O Mundo de Apu" (59), de Satyajit Ray. Três filmes brilhantes. Os dois discutem como diretores podem usar objetos inanimados para discutir emoções humanas. São histórias muito íntimas, familiares, a rigor. E há o filme de Ozu ("Era uma Vez em Tóquio"), que é diretamente sobre família. A discussão sobre filmes prepara a grande conversa do final entre Katya e o avô.

FOLHA - Por que o livro foi lançado primeiro na Dinamarca?
AUSTER
- Sempre publico na Dinamarca primeiro. Tenho um acordo com minha editora lá, que quase precisou fechar. É um gesto de amizade. Na Holanda foi lançado em junho, pelas mesmas razões. Mas não saiu em mais nenhum lugar. Nos EUA sai em 19 de agosto. Em vários países europeus sai em setembro.

FOLHA - Como foi a experiência de filmar em Portugal seu último longa ("Kimera - Estranha Sedução")?
AUSTER
- Gostei muito. Foi muito feliz. É um filme tão pequeno e estranho. Foi lançado em poucos países. O distribuidor nos EUA disse: "Adorei, é original, cativante, mas não tem o menor potencial comercial. Zero. Se você quiser, podemos distribuir, mas não tenha esperanças..." E foi exatamente o que aconteceu. Ou seja, quase nada... [risos]

FOLHA - Pretende dirigir de novo?
AUSTER
- Não sei. Não tenho projetos. Estou escrevendo outro romance, mas não posso falar sobre ele. Se tiver idéia para outro filme, posso fazer. Mas todos os cineastas independentes estão com dificuldades neste momento. Encontrei no último Festival de San Sebastián dois americanos admiráveis, Wayne Wang, com quem já filmei, e John Sayles. Os dois foram pioneiros do movimento do cinema independente, nos anos 80. Ganham prêmios, mas disseram que não conseguem distribuição nos EUA. Isto é triste, não é mesmo?


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