São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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Crítica/"Homem no Escuro"

Auster encara o trauma do 11/9 com sutilezas inesperadas

Atualização do mito da desaparição humana se dá, entretanto, de forma superficial

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paul Auster tem buscado em seus dois últimos livros, "Desvarios no Brooklyn" e "Viagens no Scriptorium", alguma renovação formal temática, procurando alternativa à exploração sem fim de seu entrecho predileto, "homem abandona tudo misteriosamente". Antes suspeito do esgotamento desses personagens fugidios, porém, o autor norte-americano renova agora seu antigo interesse pelo frágil equilíbrio da identidade em "Homem no Escuro". Sob tal aspecto, seu novo romance desperta incêndios na imaginação, mas, como se lerá, tudo não passa de fogo de palha. Os tempos são outros (e a exigente mercancia editorial também), e hoje seria impensável escritores como Franz Kafka ou Marcel Proust serem acusados de repetitivos. Há até quem defenda que a exploração de obsessões particulares seja característica comum entre grandes autores. A insistência em atualizar o mito transcendentalista da desaparição humana na paisagem (em cujo panteão estão Thoreau e Whitman) está no cerne da melhor obra de Auster, e suas preocupações com o mito inaugural norte-americano não são relegadas em "Homem no Escuro"; o principal problema é que surgem de maneira superficial.

Realidade paralela
August Brill é um velho escritor viúvo e insone convivendo com a filha e a neta, ambas também viúvas. É um homem devastado pela imobilidade (teve a perna arruinada num acidente) e pelas noites em claro nas quais, para não relembrar o passado doloroso, imagina, noite após noite, a história de Owen Brick, um mágico de salão que é transportado à realidade paralela de um EUA onde não houve o 11 de Setembro e não existe a Guerra do Iraque. Nesse país alternativo, os EUA estão em batalha consigo mesmo, numa segunda Guerra da Secessão. Brick é então incumbido de assassinar Brill (e isto indica que Auster não se cansou de seus jogos onomásticos), o homem que está contando para si mesmo a história em que tudo isto, a guerra civil e a sua queda pessoal -adultério, infelicidades e erros- conjugam-se à realidade atual de forma enternecedora e -por mais fantástico que o enredo possa sugerir- absolutamente verdadeira. "Homem no Escuro" é, portanto, mais um romance que lida com o trauma pós-11 de Setembro, mas com sutilezas inesperadas baseadas nas possibilidades redentoras da memória e da imaginação. E pára aí. Não se trata de obra-prima. "Homem no Escuro" é um romance imperfeito, cujas linhas narrativas não se furtam a causar descrença e alguma insatisfação (Brick e sua missão, por exemplo, são abortados sem muitas explicações). É, porém, uma narrativa evocadora de certa tradição literária baseada na voz reparadora de um homem velho à beira da morte, assim como nos (agora sim) primorosos "Malone Morre", de Beckett, e "Homem no Holoceno", de Max Frisch. E quem se importa com obras-primas em tempos de guerra? Talvez uma bela canção seja suficiente, e é isto que Auster faz: ele canta as dores humanas por meio da fábula, apesar de, em seu caso, a máquina de fabular andar um tanto emperrada.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)

HOMEM NO ESCURO
Autor: Paul Auster
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38,00 (165 págs.)
Avaliação: bom

NA INTERNET
www.folha.com.br/082211
leia trecho do livro



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