São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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Memória

Obra de Soljenítsin denuncia injustiças da história soviética

Depois de expulso da URSS, em 74, escritor conseguiu reunir e publicar toda a sua obra

PAULO BEZERRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alexander Soljenítsin, morto no domingo, aos 89, surgiu no mundo literário russo em 1962 com a publicação, pela revista "Novi Mir", da novela "Um Dia na Vida de Ivan Dieníssovitch", crônica da vida num campo de trabalhos forçados, onde os prisioneiros vegetam em condições subumanas, trabalham sem remuneração, comem comida estragada, e o dinheiro que porventura seus familiares enviam é retido para cobrir as despesas do prisioneiro. Além do relato das condições em que são mantidos os prisioneiros, muitos sem qualquer culpa formal, a novela já registra um aspecto nefasto da vida soviética, só bem mais tarde percebido e denunciado por estudiosos: o trabalho dos prisioneiros é parte de um sistema de produção que integra o próprio sistema econômico, até entra no planejamento, e é tão arraigado que só será abolido na gestão de Gorbatchov, portanto no fim da União Soviética. A novela teve um sucesso estrondoso entre leitores, escritores, críticos. A Redação da revista e o próprio Soljenítsin receberam uma enxurrada de cartas de ex-prisioneiros, e esse material se constituiria numa das fontes da gigantesca crônica de 38 anos de história soviética e alimenta a narrativa dos três livros que compõem "O Arquipélago Gulag", já iniciada às escondidas em 1958. Em seguida, a "Novi Mir" ainda publicou quatro contos de Soljenítsin, e só. Começa aí a via-crúcis do autor. O romance "O Pavilhão dos Cancerosos", relato da própria experiência de Soljenítsin na luta contra o câncer num hospital de Tashkende, e também das degradantes condições de funcionamento daquele hospital, recebeu de todas as instâncias legais, inclusive do sindicato dos escritores, o aval para publicação, que acabou vetada pelas autoridades. Só depois de esgotar todos os trâmites legais para publicação do livro, Soljenítsin permitiu que ele fosse lançado pela Samizdat, editora clandestina dos dissidentes. A publicação de "Um Dia na Vida..." foi favorecida pelo clima de relativo abrandamento da censura soviética no período de Khruschov; já a proibição para publicar "O Pavilhão..." coincidiu com o ocaso e a queda de Khruschov, seguida da volta do neostalinismo ao poder.

Trabalhos forçados
O escritor enfrentou a mesma via-crúcis com o romance "O Primeiro Círculo". Concebido sob a forma de círculos em analogia com os círculos do inferno de Dante, esse romance é um relato da própria experiência do autor em um campo de trabalhos forçados, onde cumpriu pena de oito anos por ter criticado Stálin numa carta a um amigo. Também neste caso, ele só permitiu sua publicação pela Samizdat e, posteriormente, no exterior depois de esgotar todas as tentativas para publicá-lo por via legal. Até "O Arquipélago Gulag" ele tentou publicar por via legal. Depois de expulso da URSS, em 1974, Soljenítsin finalmente consegue reunir e publicar toda a sua obra, cujo carro-chefe é "O Arquipélago Gulag". Obra composta por três volumosos livros, traça um amplo painel de 38 anos de história soviética, reunindo um número impressionante de testemunhos que engloba de cartas de ex-prisioneiros e outras vítimas de perseguição a testemunhos das pessoas mais simples até de cientistas, escritores, artistas, numa gama humana tão vasta que, por si só, já nos dá a dimensão da tragédia que se abateu sobre um povo ao longo de décadas. Deparamos um painel de sonhos tragicamente frustrados, vidas ceifadas ainda em seu florescer, carreiras científicas abruptamente interrompidas, projetos literários abortados pela truculência, inteligências confinadas, famílias desfeitas ou destruídas, enfim, tamanho diapasão de tragédias pessoais que o leitor tem a impressão de estar de fato no inferno. E tudo isso sob um fundo sinistro: uma revolução que começara como o início da realização de um sonho de milhões, degenera num pesadelo fantasmático. A última obra de vulto de Soljenítsin -"Duzentos Anos Juntos"- trata de dois séculos de história dos judeus na Rússia e se estende de 1795 a 1995. Ele já foi acusado de anti-semitismo por essa obra, mas, nas primeiras 50 páginas que li, não encontrei nenhum vestígio de anti-semitismo.

Obstinado
Soljenítsin foi um grande escritor, um homem de um valor ético extraordinário, obstinado em denunciar, com notórios riscos para sua vida, todos os crimes e injustiças cometidas pelos sucessivos governos soviéticos. Muitos traços de sua obra permitem associá-lo a Tolstói e Dostoiévski, mas ele jamais atingiu as profundezas filosóficas e psicológicas ou a maestria estética dos dois. Ultimamente Soljenítsin vinha criticando duramente a situação econômica e moral da Rússia, sobretudo a privataria de Ieltsin, que da noite para o dia transformou numerosos pés-rapados em milionários. Estes eram alvos de duras críticas do escritor. Ele também vinha defendendo a volta da pena de morte para combater o terrorismo no país, sob o argumento de que, em certos momentos, o Estado e a sociedade precisam se defender. Muitos ex-prisioneiros soviéticos devem a Soljenítsin sua libertação e reabilitação civil.

PAULO BEZERRA é professor de teoria literária na Universidade Federal Fluminense e tradutor, entre outras, de obras de Soljenítsin



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