São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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DRAUZIO VARELLA

Paquidermes estatais

Nossos hospitais públicos são inacreditáveis. Há poucas exceções que confirmam a regra, como de costume. Não é a essas que me refiro neste artigo nem aos servidores da Saúde dedicados ao trabalho, apesar do salário ridículo.
Há 40 anos, nós pensávamos que o Estado deveria construir e gerenciar hospitais gratuitos para a população inteira. O lema era: "Saúde, Direito do Cidadão, Dever do Estado". Naquela época, defendíamos idéias sem nos preocuparmos com o dinheiro necessário para concretizá-las.
O resultado foi esse que as televisões mostram: filas de pessoas humildes na frente de prédios velhos com doentes nas macas do corredor, leitos desativados, poucos funcionários nas funções ativas, muitos encostados na burocracia, desperdício, roubo e humilhação para o usuário. É por idéias como essa que a sabedoria popular diz: "De bem-intencionados o inferno está cheio".
Seria imoral oferecer assistência médica gratuita para todos num país com as desigualdades do nosso. Tem cabimento, agora, os mais abastados, além dos privilégios de que desfrutam, ainda receberem tratamento médico de graça? Na prática, isso significa tirar dinheiro dos pobres e dar aos ricos.
As consequências desse equívoco trágico estão aí: os hospitais públicos são impossíveis de administrar. Vamos nos iludir até quando?
Imagine que você tivesse um botequim modesto, que precisasse de apenas três empregados no balcão e um na cozinha para funcionar bem. Suponha que, por alguma razão superior, em vez desses quatro empregados necessários, você fosse obrigado a contratar 20 e ainda um gerente escolhido por um político que você acha desonesto. E que, a cada eleição, esse gerente fosse substituído por um representante de outro grupo político. Suponha, ainda, que todos ganhassem seus salários independentemente da competência ou esforço e que houvesse estabilidade de emprego. Você não poderia demitir ninguém, nem mesmo o funcionário surpreendido ao sair com mercadorias pela porta dos fundos. Nesse caso, o máximo permitido seria abrir um processo administrativo contra o ladrão, que levaria anos para ser concluído e no decurso do qual o malandro continuaria recebendo seus salários, regularmente, é lógico.
Com tanta gente, mais os encargos trabalhistas, ficaria impossível pagar, digamos, mais do que R$ 300 para cada um. Se, ao menos, pudesse demitir os inúteis, sobraria para pagar melhor os que trabalhassem. Não é possível nem sequer recompensar o esforço individual: aumentou o salário de um, tem de dar aumento geral. Como ninguém consegue sustentar com decência uma família ganhando essa miséria, seus empregados provavelmente chegariam para trabalhar irritados e tratariam mal a clientela. No horário de serviço, muitos deles fariam bico em outros empregos. Isso para não mencionar as estripulias do gerente nomeado pelo político.
Um hospital público é parecido. Os que conhecem sabem. O dia em que publicarem quanto custa a diária num leito ou uma operação de hérnia pelo Estado, somados todos os custos operacionais, acrescidos dos gastos com o desperdício e a corrupção, haverá comoção popular. Chegaremos à conclusão de que uma diária é mais barata num hospital de luxo e que operar hérnia nos melhores centros particulares do país sai mais em conta.
Senão, vejamos: num bom hospital, o médico pede os exames na véspera da cirurgia e manda o doente se internar logo cedo, para operar às sete da manhã. No dia seguinte, tira o paciente da cama e o manda para casa com receita de analgésico e um número de telefone para chamar, se for o caso.
No serviço público, a rotina segue caminhos mais sinuosos. No ambulatório, o médico também pede os exames, mas o laboratório demora para marcar a colheita e mais ainda para enviar o resultado. Resultados normais, o médico inscreve o doente na fila de internação. Uma dia, a vaga aparece. Na manhã seguinte, se não faltar, o cirurgião verifica que os exames do ambulatório são de semanas atrás e pede que sejam repetidos. Mesma rotina de colheita e espera. Aí vem a fila do centro cirúrgico. É preciso paciência, às vezes são dias de internação aguardando. Quando chega a data, o paciente em jejum, a cirurgia pode ser suspensa às duas da tarde porque a anterior demorou mais do que o previsto, faltaram auxiliares, quebrou a estufa de esterilização ou houve má vontade geral.
Para não falar nas noites que o doente passou longe da família, quanto custa tudo isso para os nossos cofres? Em nome de que insistir nessa insânia?
É preciso abandonar esse modelo de assistência baseado em hospitais administrados pelo Estado. Deu errado! É um mau entendimento das funções do Estado: a ele cumpre o dever ético de pagar pelo atendimento dos pobres, e apenas deles, não o de administrar serviços. Tocar hospitais não é função do Estado!
O que fazer, então? Privatizá-los?
Não. Comunizá-los, transformá-los em santas casas de misericórdia. Explicaremos por que no próximo artigo.


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