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CARLOS HEITOR CONY
Da arte de falar mal
Durante anos, em minhas
primeiras andanças no ofício de cronista, mantive no "Correio da Manhã" e quase simultaneamente na Folha de S.Paulo,
onde revezava com Cecília Meirelles dia sim, dia não, uma seção
assim intitulada: "Da arte de falar mal". Não chegava a falar mal
de ninguém, mas, genericamente,
de tudo, o que até hoje faço, sem o
mesmo vigor, é certo, mas com
igual dose de razão. De lá para cá,
o tempo não conseguiu melhorar
nem a mim nem ao mundo.
Pode parecer que fui ou continuo sendo o único a cultivar semelhante e maléfica arte. Nem
tanto, nem tanto. Lembro dois,
aliás, três episódios que demonstram a saudável tendência comum a muita gente boa sem necessariamente me incluir nesse tipo de gente.
Numa tarde antiga do passado,
quando eu era vizinho de Guimarães Rosa, ali no Posto Seis, ele,
sentindo-se sozinho e sem ter nada a fazer ou sem vontade de fazer qualquer coisa, me convocou
para jogar conversa fora. Rosa
morava na rua Francisco Otaviano e eu, ao pé (a expressão era do
gosto e uso de Machado de Assis),
ou seja, morava na rua Raul
Pompéia.
Ele me recebeu com aquela cara
que ficava um pouco infantil, passara a manhã revendo uns textos,
já havia me ensinado o seu método, quando suprimia uma palavra, riscava-a toda, nada deixando que lembrasse a eliminação.
Gostava de riscar palavras como
"amena" ou "sincera", não por
serem adjetivos que julgasse redundantes, mas porque as letras
tinham a mesma altura, ficava
fácil apagar tudo sem deixar nenhum vestígio. O mesmo não
ocorria quando havia um "q",
um "p" ou um "t", que davam
maior altura ou profundidade à
palavra escrita, obrigando-o a
aumentar o volume do retângulo
feito a tinta.
O bibliófilo José Mindlin, se não
estou enganado, tem uma edição
do "Grande Sertão: Veredas"
cheio desses cubinhos azulados,
dando a impressão de que foram
feitos com um carimbo ou com
uma régua e compasso. Infelizmente, não lhe herdei nem o gênio nem o estilo, mas herdei essa
mania, até a chegada do computador que deleta a palavra indesejável com menos esforço e compenetração.
Mas não foi para isso que ele me
chamou naquela tarde. Queria
conversa. Duas horas depois e
dois chás que ele mesmo preparou, levou-me até a porta, olhou-me com aquele jeito de gato safado e comentou: "Puxa! Como falamos mal de todo mundo!".
Pulo alguns anos e estou na sala
de Rachel de Queiroz. Haviam-me feito candidato à Academia
Brasileira de Letras. Não fiz campanha, apenas duas visitas a acadêmicos que revelaram o mau
gosto de me conhecer em carne e
osso. Não foi o caso de Rachel,
mas ela mandou um recado pela
sobrinha. Exigia que eu fosse buscar o voto dela pessoalmente. Dirigi-me ao prédio no Leblon, que
tem hoje o nome de sua mais ilustre moradora. Ela me recebeu em
sua cadeira de balanço. Tudo ali
lembrava a miniatura de pequena casa-grande, sala senhorial,
despojada, redes, cadeiras e sofás
de palhinha, aquele cheiro bom
de limpeza, claridade e paz das
casas nordestinas.
Mal entrei e, antes de pedir que
me sentasse à sua frente, ela me
entregou um envelope: "Pronto!
Aqui estão os votos para os quatro escrutínios! Não se fala mais
nisso. Vamos agora falar mal de
todo mundo!".
Anoiteceu e ainda estávamos
botando em dia a vida e os feitos
alheios. Política, sociedade, Academia, artes em geral, não ficou
pedra sobre pedra de nada e de
ninguém. Grande Rachel. Não se
faz outra igual.
Os dois casos acima lembrados
tiveram a minha participação.
Lembrarei agora um terceiro,
que, por acaso, já contei resumidamente em outro canto de jornal por aí. Noite de chuva, meia
dúzia de escritores estava reunida
na casa de um famoso dicionarista. De repente, lembraram-se de
um colega, notável ensaísta, jurista, historiador, parlamentar e ex-ministro de Estado. Um dos intelectuais foi encarregado de telefonar para o ausente. Recebeu uma
resposta definitiva: "Não, meu caro, sinto muito, mas está chovendo, já estou recolhido, lendo o
meu Montaigne...".
O intelectual desligou o telefone
e informou com cara desolada:
"Ele não pode vir, está chovendo,
já se recolheu, está lendo o Montaigne dele...".
O dono da casa ficou furioso.
Acusou o colega de não ter feito a
convocação como devia. Pegou o
telefone, discou com raiva para a
casa do ensaísta, jurista, historiador, parlamentar e ex-ministro de
Estado, exigindo a sua presença.
A resposta foi a mesma: "Não posso, sinto muito, está chovendo, já
estou recolhido, lendo o meu
Montaigne...".
-Uma pena, realmente uma
pena! Estamos aqui reunidos, falando mal do Gilberto Freyre...
Do outro lado da linha, a voz
veio, terrível: "Nem mais uma palavra! Me esperem! Daqui a 15
minutos estou aí!".
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