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Memória da fantasia
Perfeccionista e elegante, a escritora Lygia Fagundes Telles lança livro, relembra a juventude e comenta a perda do único filho
CHANTAL BRISSAC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Lygia Fagundes Telles chega
à sala de seu apartamento, no
bairro paulistano dos Jardins,
com seu mais novo rebento nas
mãos: "É que nem bolo saído do
forno". Ela acaba de lançar
"Conspiração de Nuvens" (ed.
Rocco), que reúne contos de
ficção, crônicas, testemunhos e
relatos inéditos. "Uma memória fantasiada", resume.
As 19 histórias nos levam à
infância passada no interior de
São Paulo e também aos tempos de juventude e maturidade.
Da fase de estudante de direito
da Faculdade do largo São
Francisco, onde ela se formou,
às lembranças de viagem com o
segundo marido, o cineasta e
crítico de cinema Paulo Emilio
Salles Gomes (1916-77), há um
pouco de tudo, inclusive episódios com figuras célebres da intelectualidade brasileira, como
o conto "Solo de Clarineta", no
qual lembra a amizade com o
escritor Erico Verissimo.
Lygia começou a escrever há
um ano, logo depois da morte
de seu único filho, o cineasta
Goffredo Telles Neto, aos 52.
"De um certo modo, eu me
transformei numa espécie de
testemunha dele e de mim.
Quando ele morreu, eu pensei:
"O que estou fazendo aqui? Vou
morrer junto?". E decidi escrever. Sobre ele, nunca; isso eu
não poderia fazer. Mas de um
certo modo, a lembrança do
meu filho está em tudo."
"Conspirações" vem fechar o
ciclo de memória e fantasia que
Lygia iniciou em obras anteriores, com "Invenção e Memória"
(2000) e "Durante Aquele Estranho Chá" (2002). Segundo o
escritor e jornalista Suênio
Campos de Lucena, que a ajudou na organização do livro, o
estilo de trabalho de Lygia é
pautado pelo perfeccionismo.
"Eu aprendi muito com ela
nesse labor, nessa dedicação ao
texto de forma inesgotável", revela Suênio. Um dos contos
chegou a ter oito versões.
Para a autora, o apoio de Suênio foi essencial. "Quando estava deprimida, ele vinha e me
animava; quando eu via, já estava trabalhando".
As netas, Lúcia e Margarida,
de 26 e 20 anos, também foram
parceiras constantes na jornada. "Elas são lindas, são meninas altas", elogia a avó coruja,
apontando o porta-retrato na
estante repleta de fotografias e
lembranças.
Novo romance
Toda de preto, sentada elegantemente com as pernas cruzadas, a boca pintada de vermelho, Lygia não aparenta os seus
84 anos. Sua voz, clara, tem
energia, vigor.
Ela gesticula e ri com vontade quando lembra de passagens
engraçadas, como o diálogo
com um colega do curso de direito. "Um dia, um dos rapazotes virou para mim e me convidou para ir à boate. Éramos
apenas seis meninas na faculdade, no meio de mais de 200
homens. Eu não costumava
sair, respondi que não, ao que
ele me disse: "Por acaso você é
virgem?". E eu: "Eu sou, mas não
por acaso'" [gargalhadas].
Em outros momentos da entrevista, Lygia declama. "Eu
vou dizer um poeminha pequeno de Carlos Drummond de
Andrade, um dos meus amados
amigos", anuncia: "As coisas
tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as
coisas findas, muito mais que
lindas, essas ficarão".
"É lindo esse poema, não?
Como dizia meu pai, ninguém
morre." Ela conta que o novo livro atiçou o desejo de escrever.
Pensa em um romance, que já
começa a alinhavar. Nele, uma
personagem de "As Meninas"
(1973) deve voltar. "As personagens são como nós mesmos,
nós não queremos morrer."
Uma pausa, e a copeira oferece gentilmente chá e vinho do
Porto. Lygia aceita o chá; o médico a proibiu de beber sua clássica taça de vinho tinto, boa para o coração. "Tenho poucos
prazeres, um deles é um cigarro
de vez em quando", diz, enquanto pega o maço remendado com esparadrapo: aquela
imagem forte da campanha antitabagista foi meticulosamente coberta por ela. "Eu acho um
desaforo essas má-criações que
eles põem, dizendo que a gente
vai ter doenças medonhas; quero ter liberdade", reclama.
Conta que é disciplinada com
alimentação e atividade física
-define-se como uma "andeja", que caminha bastante pelas
alamedas do clube Harmonia,
onde é sócia há 40 anos, e um
tanto pelas ruas do bairro dos
Jardins.
A rotina de Lygia inclui leitura de dois jornais por dia, reuniões com amigos, palestras
mensais em universidades.
A autora premiada com o Camões (2005), o mais importante prêmio em literatura da língua portuguesa, é constantemente assediada para participar de eventos e conferências.
Mas em geral tem preferido ficar em casa, lendo. Agora, anda
outra vez apaixonada pelas
"Confissões" de santo Agostinho: "Ele é um filósofo maravilhoso. A força que passa tem me
ajudado bastante".
Televisão, vê um pouco, especialmente noticiários e programas de esportes. Conta que
torceu loucamente durante os
Jogos Pan-Americanos. A talentosa escritora é também formada em educação física pela
USP e foi esgrimista quando
moça.
Já a internet não a seduz. O
computador fica no escritório
por causa de Suênio, que digita
os textos que ela escreve à mão.
Leitor em extinção
Lygia acha que a melhor forma de superar dificuldades é o
trabalho, além da autoconsciência.
"O Paulo Emílio dizia que o
Brasil nega o seu passado de
miséria, e que deveríamos fazer
o oposto. Eu concordo. Os escritores e intelectuais não devem permitir que se apague essa história de pobreza e analfabetismo; é só assumindo o país,
sem histerias e demagogias,
que é possível acabar com esse
horror. O dia em que o Brasil tiver mais creches e mais escolas
vai ter menos hospitais e menos cadeias", ela diz.
O cineasta Paulo Emilio, cuja
obra está sendo relançada pela
editora Cosac Naify (ele morreu no dia 9 de setembro, há
exatos 30 anos), é citado várias
vezes. Para Lygia, não tem um
ser que amou tanto o Brasil como o fundador da Cinemateca
Brasileira. "Ele andou pelo
mundo todo, mas de repente se
voltou como um girassol deslumbrante para a nossa terra",
pontifica a escritora, para
quem é necessário frear a emigração de jovens talentos. "Não
adianta ir como abelha desembestada para fora, a coisa tem
que ser feita aqui."
Ela considera o número crescente de escritores positivo,
mas lamenta a ausência de leitores. "Quem está em processo
de extinção é o leitor, que lê
pouco ou não entende o que lê.
Já o escritor anda aparecendo
por toda parte. Ainda bem, estão aí todos lutando, escrevendo, as prostitutas fazendo suas
memórias. Que façam, que escrevam, tudo é válido. Mas
leiam!", brada a escritora, incansável.
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