São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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Memória da fantasia

Perfeccionista e elegante, a escritora Lygia Fagundes Telles lança livro, relembra a juventude e comenta a perda do único filho

CHANTAL BRISSAC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Lygia Fagundes Telles chega à sala de seu apartamento, no bairro paulistano dos Jardins, com seu mais novo rebento nas mãos: "É que nem bolo saído do forno". Ela acaba de lançar "Conspiração de Nuvens" (ed. Rocco), que reúne contos de ficção, crônicas, testemunhos e relatos inéditos. "Uma memória fantasiada", resume.
As 19 histórias nos levam à infância passada no interior de São Paulo e também aos tempos de juventude e maturidade. Da fase de estudante de direito da Faculdade do largo São Francisco, onde ela se formou, às lembranças de viagem com o segundo marido, o cineasta e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-77), há um pouco de tudo, inclusive episódios com figuras célebres da intelectualidade brasileira, como o conto "Solo de Clarineta", no qual lembra a amizade com o escritor Erico Verissimo.
Lygia começou a escrever há um ano, logo depois da morte de seu único filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, aos 52. "De um certo modo, eu me transformei numa espécie de testemunha dele e de mim. Quando ele morreu, eu pensei: "O que estou fazendo aqui? Vou morrer junto?". E decidi escrever. Sobre ele, nunca; isso eu não poderia fazer. Mas de um certo modo, a lembrança do meu filho está em tudo."
"Conspirações" vem fechar o ciclo de memória e fantasia que Lygia iniciou em obras anteriores, com "Invenção e Memória" (2000) e "Durante Aquele Estranho Chá" (2002). Segundo o escritor e jornalista Suênio Campos de Lucena, que a ajudou na organização do livro, o estilo de trabalho de Lygia é pautado pelo perfeccionismo.
"Eu aprendi muito com ela nesse labor, nessa dedicação ao texto de forma inesgotável", revela Suênio. Um dos contos chegou a ter oito versões.
Para a autora, o apoio de Suênio foi essencial. "Quando estava deprimida, ele vinha e me animava; quando eu via, já estava trabalhando".
As netas, Lúcia e Margarida, de 26 e 20 anos, também foram parceiras constantes na jornada. "Elas são lindas, são meninas altas", elogia a avó coruja, apontando o porta-retrato na estante repleta de fotografias e lembranças.

Novo romance
Toda de preto, sentada elegantemente com as pernas cruzadas, a boca pintada de vermelho, Lygia não aparenta os seus 84 anos. Sua voz, clara, tem energia, vigor.
Ela gesticula e ri com vontade quando lembra de passagens engraçadas, como o diálogo com um colega do curso de direito. "Um dia, um dos rapazotes virou para mim e me convidou para ir à boate. Éramos apenas seis meninas na faculdade, no meio de mais de 200 homens. Eu não costumava sair, respondi que não, ao que ele me disse: "Por acaso você é virgem?". E eu: "Eu sou, mas não por acaso'" [gargalhadas].
Em outros momentos da entrevista, Lygia declama. "Eu vou dizer um poeminha pequeno de Carlos Drummond de Andrade, um dos meus amados amigos", anuncia: "As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão".
"É lindo esse poema, não? Como dizia meu pai, ninguém morre." Ela conta que o novo livro atiçou o desejo de escrever. Pensa em um romance, que já começa a alinhavar. Nele, uma personagem de "As Meninas" (1973) deve voltar. "As personagens são como nós mesmos, nós não queremos morrer."
Uma pausa, e a copeira oferece gentilmente chá e vinho do Porto. Lygia aceita o chá; o médico a proibiu de beber sua clássica taça de vinho tinto, boa para o coração. "Tenho poucos prazeres, um deles é um cigarro de vez em quando", diz, enquanto pega o maço remendado com esparadrapo: aquela imagem forte da campanha antitabagista foi meticulosamente coberta por ela. "Eu acho um desaforo essas má-criações que eles põem, dizendo que a gente vai ter doenças medonhas; quero ter liberdade", reclama.
Conta que é disciplinada com alimentação e atividade física -define-se como uma "andeja", que caminha bastante pelas alamedas do clube Harmonia, onde é sócia há 40 anos, e um tanto pelas ruas do bairro dos Jardins.
A rotina de Lygia inclui leitura de dois jornais por dia, reuniões com amigos, palestras mensais em universidades.
A autora premiada com o Camões (2005), o mais importante prêmio em literatura da língua portuguesa, é constantemente assediada para participar de eventos e conferências. Mas em geral tem preferido ficar em casa, lendo. Agora, anda outra vez apaixonada pelas "Confissões" de santo Agostinho: "Ele é um filósofo maravilhoso. A força que passa tem me ajudado bastante".
Televisão, vê um pouco, especialmente noticiários e programas de esportes. Conta que torceu loucamente durante os Jogos Pan-Americanos. A talentosa escritora é também formada em educação física pela USP e foi esgrimista quando moça.
Já a internet não a seduz. O computador fica no escritório por causa de Suênio, que digita os textos que ela escreve à mão.

Leitor em extinção
Lygia acha que a melhor forma de superar dificuldades é o trabalho, além da autoconsciência.
"O Paulo Emílio dizia que o Brasil nega o seu passado de miséria, e que deveríamos fazer o oposto. Eu concordo. Os escritores e intelectuais não devem permitir que se apague essa história de pobreza e analfabetismo; é só assumindo o país, sem histerias e demagogias, que é possível acabar com esse horror. O dia em que o Brasil tiver mais creches e mais escolas vai ter menos hospitais e menos cadeias", ela diz.
O cineasta Paulo Emilio, cuja obra está sendo relançada pela editora Cosac Naify (ele morreu no dia 9 de setembro, há exatos 30 anos), é citado várias vezes. Para Lygia, não tem um ser que amou tanto o Brasil como o fundador da Cinemateca Brasileira. "Ele andou pelo mundo todo, mas de repente se voltou como um girassol deslumbrante para a nossa terra", pontifica a escritora, para quem é necessário frear a emigração de jovens talentos. "Não adianta ir como abelha desembestada para fora, a coisa tem que ser feita aqui."
Ela considera o número crescente de escritores positivo, mas lamenta a ausência de leitores. "Quem está em processo de extinção é o leitor, que lê pouco ou não entende o que lê. Já o escritor anda aparecendo por toda parte. Ainda bem, estão aí todos lutando, escrevendo, as prostitutas fazendo suas memórias. Que façam, que escrevam, tudo é válido. Mas leiam!", brada a escritora, incansável.


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