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CINEMA
Longa-metragem de Lucrecia Martel venceu prêmio dedicado a diretores estreantes no Festival de Berlim deste ano
"O Pântano" suscita disfunções argentinas
DENISE MOTA
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA
Ao falar sobre "o que não está
funcionando bem, entre as pessoas da Argentina", a novata em
longas-metragens Lucrecia Martel, 34, levou o prêmio dedicado a
filmes de diretores estreantes do
Festival de Berlim deste ano.
Seu filme, "O Pântano", foi exibido pela primeira vez no Brasil
anteontem, dentro da programação do 3º Festival do Rio BR.
O rosário de disfunções de Martel tem início com uma tempestade que se aproxima. Taças balançam. Corpos, flácidos, tremem. A
câmera oscila. Uma mulher, trôpega pelo efeito do vinho, cai. Disso se compõem as primeiras cenas da produção. É de instabilidade que se trata.
O cotidiano da classe média da
província argentina de Salta reflete-se na rotina de duas famílias
durante o Carnaval. Em ambas, as
mães são figuras centrais. Num
caso, uma mulher alcoolizada
ininterruptamente não dispensa
maiores atenções aos filhos, ao
marido -igualmente entorpecido pelo álcool- e a nada que esteja relacionado à sua vida.
No outro, uma matriarca cercada de crianças e afazeres domésticos tem como desafios desde levar
o filho menor ao médico até planejar cruzar a fronteira para comprar material escolar na Bolívia.
"Quis me comprometer a falar
sobre o que está próximo a mim.
O que me parece doloroso é a perda de solidariedade e de vontade
na classe média argentina", explica Martel, que antes havia feito
documentários e um curta.
A desolação da paisagem acompanha a história, aumentando a
sensação de iminente tragédia para que caminham os personagens
de "O Pântano". E não, não há final feliz.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, a cineasta
-que também assina o roteiro-
fala de "O Pântano", comenta seu
próximo projeto e analisa o momento atual de seu país e da cinematografia a qual pertence.
Folha - A sra. não gosta de dizer
que seu filme é um retrato da Argentina. Por quê?
Lucrecia Martel - Porque retratar
a Argentina é impossível. Não há
como escrever sobre toda a tragédia argentina. Escreve-se sobre o
que te rodeia. Parece-me excessivo para uma pessoa dizer que está
falando sobre toda a Argentina.
Folha - Mas há um tipo de leitura
do país, mesmo assim.
Martel - Sim, quando se fala da
família de alguém, você acaba se
referindo ao marco cultural a que
pertencem essas pessoas. O que
pensei ao fazer "O Pântano" é que
há coisas que não estão funcionando bem, que vejo na minha
própria vida e entre as pessoas da
Argentina. Quis me comprometer a falar sobre isso. E família é
uma estrutura muito complexa,
que não defendo nem ataco. O
que me parece doloroso é a perda
de solidariedade e de vontade na
classe média argentina, há uma
desarticulação política pós-ditadura nessas pessoas.
Folha - Que avaliação a sra. faz do
cinema argentino neste momento?
Martel - No cinema recente da
Argentina, apareceu uma nova
geração de diretores marcados
pelo mesmo período histórico,
com muita vontade de dividir coisas e de dizer essas coisas. E o cinema argentino tem sobrevivido,
apesar dos problemas econômicos. Aliás, espero que a crise não
interrompa isso. O que transparece é que o desejo de compartilhar
histórias é mais forte do que problemas econômicos. Há muita
gente nova que atravessou épocas
muito duras. E sempre estão sendo filmadas histórias que falam
do entorno do diretor, o que dá
força a esse cinema porque isso é
o que lhe dá verossimilhança.
Folha - E qual a sua análise do cinema latino, em geral?
Martel - O que me chama a atenção é que há uma ignorância suprema, na América Latina, de sua
própria cultura. É enorme a desarticulação dessas culturas, isso
marca a nossa debilidade. Não há
uma forma de circulação de produtos culturais, é como se houvesse se desarticulado a idéia de
América Latina em si.
Folha - Quais seriam os entraves à
circulação desses produtos, por
exemplo, no Mercosul?
Martel - Acredito que o problema é que a política latino-americana, em geral, é pendente mais a
quem devemos do que a quem divide conosco nosso estado de tragédia e miséria. Interessa agradar
mais a eles do que nos juntarmos
com quem é igual a nós. É vergonhosa a relação que a Argentina
tem com os EUA. Penso que deve
existir outras alternativas de relacionamento. Mas falta gente para
pensar nessas novas saídas.
Folha - "Nove Rainhas" foi visto
por mais de 70 mil pessoas em São
Paulo. A sra. crê que há uma demanda não satisfeita de filmes da
região?
Martel - Estou convencida que
sim. A Argentina gosta do Brasil,
excetuando-se a rivalidade no futebol. Especialmente no sul da Argentina, há pessoas que adoram o
Brasil, que o vêem como um lugar
de liberdade. O problema dos filmes é de distribuição. Quando há
anúncios de filmes, há público.
"Central do Brasil" foi um sucesso
na Argentina. Penso que outros
filmes brasileiros também poderiam ir bem nas salas argentinas,
mas as pessoas precisam saber
que esses filmes estão passando. E
eles têm de ser distribuídos.
Folha - Como será seu novo filme?
Martel - "La Niña Santa" [A Garota Santa" é sobre adolescentes
de paróquia e médicos [o filme
aborda a iniciação sexual de jovens católicas". A protagonista é
uma garota, e todos os médicos
do filme serão homens. Agora estou escrevendo o roteiro e pretendo rodá-lo no ano que vem. Estou
negociando co-produção com a
França, mas os atores serão argentinos.
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