São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2001

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CINEMA

Longa-metragem de Lucrecia Martel venceu prêmio dedicado a diretores estreantes no Festival de Berlim deste ano

"O Pântano" suscita disfunções argentinas

DENISE MOTA
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

Ao falar sobre "o que não está funcionando bem, entre as pessoas da Argentina", a novata em longas-metragens Lucrecia Martel, 34, levou o prêmio dedicado a filmes de diretores estreantes do Festival de Berlim deste ano.
Seu filme, "O Pântano", foi exibido pela primeira vez no Brasil anteontem, dentro da programação do 3º Festival do Rio BR.
O rosário de disfunções de Martel tem início com uma tempestade que se aproxima. Taças balançam. Corpos, flácidos, tremem. A câmera oscila. Uma mulher, trôpega pelo efeito do vinho, cai. Disso se compõem as primeiras cenas da produção. É de instabilidade que se trata.
O cotidiano da classe média da província argentina de Salta reflete-se na rotina de duas famílias durante o Carnaval. Em ambas, as mães são figuras centrais. Num caso, uma mulher alcoolizada ininterruptamente não dispensa maiores atenções aos filhos, ao marido -igualmente entorpecido pelo álcool- e a nada que esteja relacionado à sua vida.
No outro, uma matriarca cercada de crianças e afazeres domésticos tem como desafios desde levar o filho menor ao médico até planejar cruzar a fronteira para comprar material escolar na Bolívia.
"Quis me comprometer a falar sobre o que está próximo a mim. O que me parece doloroso é a perda de solidariedade e de vontade na classe média argentina", explica Martel, que antes havia feito documentários e um curta.
A desolação da paisagem acompanha a história, aumentando a sensação de iminente tragédia para que caminham os personagens de "O Pântano". E não, não há final feliz.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, a cineasta -que também assina o roteiro- fala de "O Pântano", comenta seu próximo projeto e analisa o momento atual de seu país e da cinematografia a qual pertence.

Folha - A sra. não gosta de dizer que seu filme é um retrato da Argentina. Por quê?
Lucrecia Martel -
Porque retratar a Argentina é impossível. Não há como escrever sobre toda a tragédia argentina. Escreve-se sobre o que te rodeia. Parece-me excessivo para uma pessoa dizer que está falando sobre toda a Argentina.

Folha - Mas há um tipo de leitura do país, mesmo assim.
Martel -
Sim, quando se fala da família de alguém, você acaba se referindo ao marco cultural a que pertencem essas pessoas. O que pensei ao fazer "O Pântano" é que há coisas que não estão funcionando bem, que vejo na minha própria vida e entre as pessoas da Argentina. Quis me comprometer a falar sobre isso. E família é uma estrutura muito complexa, que não defendo nem ataco. O que me parece doloroso é a perda de solidariedade e de vontade na classe média argentina, há uma desarticulação política pós-ditadura nessas pessoas.

Folha - Que avaliação a sra. faz do cinema argentino neste momento?
Martel -
No cinema recente da Argentina, apareceu uma nova geração de diretores marcados pelo mesmo período histórico, com muita vontade de dividir coisas e de dizer essas coisas. E o cinema argentino tem sobrevivido, apesar dos problemas econômicos. Aliás, espero que a crise não interrompa isso. O que transparece é que o desejo de compartilhar histórias é mais forte do que problemas econômicos. Há muita gente nova que atravessou épocas muito duras. E sempre estão sendo filmadas histórias que falam do entorno do diretor, o que dá força a esse cinema porque isso é o que lhe dá verossimilhança.

Folha - E qual a sua análise do cinema latino, em geral?
Martel -
O que me chama a atenção é que há uma ignorância suprema, na América Latina, de sua própria cultura. É enorme a desarticulação dessas culturas, isso marca a nossa debilidade. Não há uma forma de circulação de produtos culturais, é como se houvesse se desarticulado a idéia de América Latina em si.

Folha - Quais seriam os entraves à circulação desses produtos, por exemplo, no Mercosul?
Martel -
Acredito que o problema é que a política latino-americana, em geral, é pendente mais a quem devemos do que a quem divide conosco nosso estado de tragédia e miséria. Interessa agradar mais a eles do que nos juntarmos com quem é igual a nós. É vergonhosa a relação que a Argentina tem com os EUA. Penso que deve existir outras alternativas de relacionamento. Mas falta gente para pensar nessas novas saídas.

Folha - "Nove Rainhas" foi visto por mais de 70 mil pessoas em São Paulo. A sra. crê que há uma demanda não satisfeita de filmes da região?
Martel -
Estou convencida que sim. A Argentina gosta do Brasil, excetuando-se a rivalidade no futebol. Especialmente no sul da Argentina, há pessoas que adoram o Brasil, que o vêem como um lugar de liberdade. O problema dos filmes é de distribuição. Quando há anúncios de filmes, há público. "Central do Brasil" foi um sucesso na Argentina. Penso que outros filmes brasileiros também poderiam ir bem nas salas argentinas, mas as pessoas precisam saber que esses filmes estão passando. E eles têm de ser distribuídos.

Folha - Como será seu novo filme?
Martel -
"La Niña Santa" [A Garota Santa" é sobre adolescentes de paróquia e médicos [o filme aborda a iniciação sexual de jovens católicas". A protagonista é uma garota, e todos os médicos do filme serão homens. Agora estou escrevendo o roteiro e pretendo rodá-lo no ano que vem. Estou negociando co-produção com a França, mas os atores serão argentinos.


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