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MÚSICA ERUDITA
Um Rossini bem mal passado
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Senhoras e senhores: uma
vez que a soprano Silvia
Dalla Benetta está acamada..." Assim dizia, pelos alto-falantes, a
voz com sotaque francês inconfundível de Gerald Perret, diretor
do teatro Cultura Artística. Com a
soprano doente, o programa inteiro mudou para o concerto da
Camerata Strumentale Città di
Prato, anteontem.
Caíram as duas principais peças: o sexteto "Questo è um nodo"
da ópera "La Cenerentola" e o final do Ato 1, um septeto, de "L'Italiana in Algeri". Sendo um programa só de música de Rossini
(1792-1868), essas peças com muita gente no palco seriam o clímax
de tudo: daquelas cenas em que a
fúria e a graça crescem desabaladamente, até a grande catástrofe.
Depois do quê, nada. Ou melhor:
o nada, o buraco melancólico que
se escancara por baixo do ceticismo alegre do maior compositor
da ópera italiana de início do século 19.
Num tratado hoje esquecido,
escrito em 1834, o teórico Raphael
Georg Kiesewetter refere-se a seu
próprio tempo como "a era de
Beethoven e Rossini". A expressão soa meio absurda hoje; mas
resume bem a situação de uma
cultura dupla, dividida entre ópera italiana e música instrumental
alemã. Outro modo de dizer a
mesma coisa: Beethoven é a música como idéia, irmã da filosofia e
da literatura; Rossini é a música
como performance, irmã do teatro e da dança. Outro ainda: Beethoven quer a essência; Rossini, a
superfície -a essência, para ele,
ESTÁ na superfície.
Vale dizer que essa música só
ganha sentido quando espetacularmente bem feita. A mezzosoprano russo-americana Marianna
Kulikova tem toda a aparência
que se pode sonhar para esse repertório. Faz parte de uma nova
geração inesperada de cantoras:
alta, magra, sexy. Sua voz tem um
timbre escuro, que impressiona
muito no início. O problema é que
não nasceu para cantar "coloratura" (aquela típica linha melódica
muito rápida e ornamentada que
é a glória da arte vocal italiana).
Outro problema é que não nasceu para fazer comédia. E o pouco
de encenação que ela e os outros
cinco cantores prepararam para
essas versões de concerto de trechos das óperas de Rossini não ultrapassou o registro escolar. A
mezzo Silvia Regazzo -alta, magra, sexy-, que cantou uma ária
de "Il Barbiere di Seviglia", sofreu
bastante com a falta de direção:
parecia mesmo estar sofrendo,
não gozando. Só quem se salvou,
neste quesito, foi o barítono ítalo-argentino Fernando Ciuffo, mais
à vontade não só com a voz, mas
com o corpo inteiro.
Algo de escolar também vinha à
tona na interpretação da orquestra, que reúne músicos jovens da
Itália, num "workshop" de alto
nível. Regida com discrição e inteligência por Alessandro Pinzauti
(professor no Conservatório de
Florença), a Camerata não faz bobagem, toca afinada, tem sentido
de conjunto, chega a vibrar um
pouco com a música. Só falta... alguma coisa... quem sabe arrojo?
Arroubo? Se os cantores fossem
espetaculares, se a coloratura fosse um show, se isso, se aquilo, se
aquilo ainda, até não se notaria o
quanto não havia para notar.
Terminar a noite com a "Sinfonia" de "L'Italiana in Algeri", sem
vozes em cena, soou como anticlímax. Sejamos francos: o concerto
inteiro foi um anticlímax para a
excelente temporada do Cultura
Artística. Uma pena. Vem aí 2004.
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