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São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

Um Rossini bem mal passado

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Senhoras e senhores: uma vez que a soprano Silvia Dalla Benetta está acamada..." Assim dizia, pelos alto-falantes, a voz com sotaque francês inconfundível de Gerald Perret, diretor do teatro Cultura Artística. Com a soprano doente, o programa inteiro mudou para o concerto da Camerata Strumentale Città di Prato, anteontem.
Caíram as duas principais peças: o sexteto "Questo è um nodo" da ópera "La Cenerentola" e o final do Ato 1, um septeto, de "L'Italiana in Algeri". Sendo um programa só de música de Rossini (1792-1868), essas peças com muita gente no palco seriam o clímax de tudo: daquelas cenas em que a fúria e a graça crescem desabaladamente, até a grande catástrofe. Depois do quê, nada. Ou melhor: o nada, o buraco melancólico que se escancara por baixo do ceticismo alegre do maior compositor da ópera italiana de início do século 19.
Num tratado hoje esquecido, escrito em 1834, o teórico Raphael Georg Kiesewetter refere-se a seu próprio tempo como "a era de Beethoven e Rossini". A expressão soa meio absurda hoje; mas resume bem a situação de uma cultura dupla, dividida entre ópera italiana e música instrumental alemã. Outro modo de dizer a mesma coisa: Beethoven é a música como idéia, irmã da filosofia e da literatura; Rossini é a música como performance, irmã do teatro e da dança. Outro ainda: Beethoven quer a essência; Rossini, a superfície -a essência, para ele, ESTÁ na superfície.
Vale dizer que essa música só ganha sentido quando espetacularmente bem feita. A mezzosoprano russo-americana Marianna Kulikova tem toda a aparência que se pode sonhar para esse repertório. Faz parte de uma nova geração inesperada de cantoras: alta, magra, sexy. Sua voz tem um timbre escuro, que impressiona muito no início. O problema é que não nasceu para cantar "coloratura" (aquela típica linha melódica muito rápida e ornamentada que é a glória da arte vocal italiana).
Outro problema é que não nasceu para fazer comédia. E o pouco de encenação que ela e os outros cinco cantores prepararam para essas versões de concerto de trechos das óperas de Rossini não ultrapassou o registro escolar. A mezzo Silvia Regazzo -alta, magra, sexy-, que cantou uma ária de "Il Barbiere di Seviglia", sofreu bastante com a falta de direção: parecia mesmo estar sofrendo, não gozando. Só quem se salvou, neste quesito, foi o barítono ítalo-argentino Fernando Ciuffo, mais à vontade não só com a voz, mas com o corpo inteiro.
Algo de escolar também vinha à tona na interpretação da orquestra, que reúne músicos jovens da Itália, num "workshop" de alto nível. Regida com discrição e inteligência por Alessandro Pinzauti (professor no Conservatório de Florença), a Camerata não faz bobagem, toca afinada, tem sentido de conjunto, chega a vibrar um pouco com a música. Só falta... alguma coisa... quem sabe arrojo? Arroubo? Se os cantores fossem espetaculares, se a coloratura fosse um show, se isso, se aquilo, se aquilo ainda, até não se notaria o quanto não havia para notar.
Terminar a noite com a "Sinfonia" de "L'Italiana in Algeri", sem vozes em cena, soou como anticlímax. Sejamos francos: o concerto inteiro foi um anticlímax para a excelente temporada do Cultura Artística. Uma pena. Vem aí 2004.


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