São Paulo, sábado, 09 de outubro de 2004

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Contra o velho gringo

Mexicano autor de "Gringo Velho" critica presidente americano e o considera indigno de ficção

CARLOS FUENTES LANÇA REUNIÃO DE ARTIGOS QUE ATACAM DELÍRIOS DE BUSH

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 50 anos cravados de prosa, o mexicano Carlos Fuentes, 75, conquistou a reputação de um dos mestres mundiais do chamado realismo fantástico. Mas não foi na ficção que o escritor de clássicos como "A Morte de Artemio Cruz" e "Mudança de Pele" diz ter encontrado os delírios mais reais.
Foi na política, mais especificamente na política de George W. Bush, ou, mais especificamente ainda, na política externa de George W. Bush. A atuação do presidente lhe impressionou de tal forma que o escritor resolveu lançar um livro com o título nada discreto de "Contra Bush", que sai simultaneamente na Europa e no Brasil, pela Rocco.
Em conversa com a Folha por telefone, da Londres onde tem vivido, o Prêmio Cervantes destilou um pouco de seu elegante veneno. Leia a seguir trechos da entrevista com o autor de "Gringo Velho", em cruzada contra o gringo Bush.
 

Folha - O sr. escolheu a forma de artigos para se manifestar contra Bush. Como a ficção pode ajudar na atuação política de um escritor?
Carlos Fuentes -
A ficção não tem um efeito político, a não ser indireto. A ficção afeta duas realidades primordiais da sociedade, a imaginação e a linguagem. A primeira coisa que faz um ditador, é sabido, é suprimir os escritores. Matá-los, exilá-los, mandá-los a campos de concentração. Eles temem outra linguagem e outra imaginação que não as do poder. Este é o valor da literatura, um valor de longo prazo.
Por outro lado, os escritores podem optar por uma militância cidadã, que é o que faço aqui. É uma posição em nada literária.

Folha - O sr. não escreveria uma ficção contra Bush?
Fuentes -
Não seria capaz, ele não merece o posto de personagem meu. Fazer de alguém um personagem é dar a este alguém uma grande honra. Eu nunca a daria para alguém tão insosso.

Folha - O livro do sr. já foi chamado de uma "Bíblia" contra Bush. De todos os pecados do presidente, qual lhe parece o capital?
Fuentes -
Sem dúvida é a violação do direito internacional, a violação do multilateralismo e a consagração da guerra preventiva. Isso representa um perigo não apenas para a sociedade americana como para o mundo inteiro.

Folha - Como o sr. explica que Bush continue na briga pela reeleição nos Estados Unidos?
Fuentes -
Ele está forte por desfraldar duas das bandeiras mais poderosas que existem, as do patriotismo e do medo. Mas mesmo tendo grandes chances ainda faltam algumas semanas, e semanas são séculos em termos de eleição. Reagan, por exemplo, ganhou uma disputa com Carter que parecia perdida no último debate.

Folha - E qual o palpite do sr.?
Fuentes -
Como dizem no baseball, o jogo não termina enquanto não acaba. É impossível saber hoje quem levará a taça.

Folha - Como uma vitória de Kerry mudaria a situação dos Estados Unidos e, portanto, do mundo?
Fuentes -
Tenho dúvidas. Acho que ele apelaria por uma maior presença internacional no Iraque. Duvido muito que Espanha, França e Alemanha queiram participar desta operação. A ONU sozinha não conseguiria muito. Estou pessimista. Creio que Bush disparou uma situação que ele não pôde controlar e que talvez ninguém mais possa. Bush perde se fica e se for embora.
Peter Galbraith, diplomata americano, sugeriu uma partição balcânica do Iraque, a divisão em regiões de sunitas, de xiitas e de curdos. Este é o cenário mais provável. Só as forças locais dominariam o terror no Iraque. Os EUA não conseguirão.

Folha - O Iraque será o principal problema do próximo presidente?
Fuentes -
É uma questão pendente fundamental. Seja Bush, seja Kerry o presidente vai ter um problema bárbaro lá. É o resultado mais palpável da horrível política externa de George W. Bush.

Folha - O sr. fala no livro sobre o fortalecimento de uma mídia conservadora nos EUA. Qual peso esta mídia tem e terá nas eleições?
Fuentes -
A mídia tem um peso fundamental na sustentação da candidatura Bush. Os EUA viram se consolidar nos últimos anos um sistema de desinformação, encabeçado pela rede Fox News. Jornais como o "New York Times" repensaram seu apoio a Bush e são muito críticos a sua administração. Mas o centro do país, o Meio-Oeste, tem um nível de desinformação notável. Nesta região é muito duro estar informado. Cidades grandes como Kansas City têm jornais nanicos e sem notícias internacionais. A TV aberta também não dá mais do que dois minutos para o que se passa no mundo. Os EUA são um país de desinformados.

Folha - O sr. faz algumas associações no livro entre Bush e o Nacional-Socialismo Alemão. O sr. acha que o texano é comparável a Hitler?
Fuentes -
Não comparo Bush a Hitler, faço só uma série de reflexões históricas. As grandes potências sempre tiveram oponentes fortes. Felipe 2º teve Elizabeth da Inglaterra. Luis 14 teve uma coalização européia. Bonaparte teve a Inglaterra. Hitler, a Rússia e os EUA. Stálin enfrentou os EUA. Agora, pela primeira vez desde o Império Romano, existe uma potência global sem oposição. Mas não acho que possa comparar os EUA com a Alemanha de Hitler. Os EUA são um país democrático, apesar dos esforços de John Ashcroft para aprovar leis fascistas.


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