São Paulo, sábado, 09 de outubro de 2004

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"A TRILHA DOS NINHOS DE ARANHA"

Calvino escreveu 1º livro em 20 dias

Desencanto político marca estréia de um jovem idealista

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O primeiro romance e primeiro livro publicado de Italo Calvino, "A Trilha dos Ninhos de Aranha", pode ser visto atualmente como simples curiosidade de arqueologia literária.
Afinal, o autor, em 1947, ano da publicação do livro, estava com 23 anos e muito longe de se tornar um dos mais importantes escritores de nossos tempos.
De fato, é curioso perceber que um dos grandes ícones da literatura fantástica do século 20 começou a vida artística com um trabalho tipicamente neo-realista.
E também é engraçado se deparar com traços explícitos de ingenuidade e idealismo no trabalho de um intelectual que se celebrizou pela extrema sofisticação.
Mas o melhor de tudo é que a leitura desse na verdade conto (gênero no qual Calvino se destacaria como mestre) ampliado pode se tornar, em si mesma, um prazer.
Calvino teve com sua estréia uma relação típica dos grandes artistas diante de sua primeira prole: misto de deslumbramento ante seu próprio entusiasmo juvenil e insatisfação frente ao resultado final do sincero esforço em busca do acerto.
Mas aqui também houve um ingrediente a mais, típico da sua geração de intelectuais de esquerda: o desencanto com as teses do socialismo, que encantaram muitos dos melhores jovens do período da Segunda Guerra e imediatamente posterior e depois os desiludiram, quando deturpados pelo pragmatismo político.
"O mal-estar que por tanto tempo este livro provocou em mim em parte se atenuou, em parte permanece: é a relação com alguma coisa maior que eu, com emoções que envolveram todos os meus contemporâneos, e tragédias, e heroísmos, e ímpetos generosos e geniais, e obscuros dramas de consciência", escreveu Calvino em 1964 sobre "A Trilha dos Ninhos de Aranha".
O enredo da obra é de grande simplicidade e exigiu do jovem Calvino apenas 20 dias para ser concluído. Foi o produto das lembranças do autor do período que passou na Resistência na região norte da Itália ao final da Segunda Guerra Mundial.
Um dos heróis é Pin, um garoto paupérrimo, irmão de uma prostituta que ganhava a vida com clientes alemães. Pin, por sua vez, sobrevive emocionalmente primeiro da atenção que adultos lhe concedem nos bares da pequena cidade em que vive em troca de brincadeiras obscenas ou canções românticas que o rapaz lhes oferece e depois da solidariedade dos partiginani com quem quase acidentalmente se junta e aos quais apaixonadamente se entrega.
O outro é Lobo Vermelho, alcunha de um adolescente muito diferente de Pin, celebrado como líder ideológico e militar apesar da pouca idade. Os dois representam extremos de uma polaridade comum na época entre os militantes que se opunham ao nazi-fascismo e que, principalmente após a invasão soviética da Hungria e mais tarde da Tchecoslováquia, levaria a cisões irreparáveis na esquerda da Europa ocidental.
Calvino, que se filiou ao Partido Comunista logo depois da guerra, foi um dos primeiros intelectuais a deixá-lo, em 1956. Mas já em 1952, ao publicar "O Visconde Partido ao Meio", seu caminho já tinha se distanciado definitivamente da ortodoxia castradora recomendada pelo partido a seus intelectuais.
A independência artística de Calvino já podia ser percebida no seu trabalho inicial. Apesar de se submeter ao dogmatismo formal e de ter tentado sinceramente compor uma ode ao heroísmo revolucionário, Calvino não deixou de apontar em seus personagens as contradições humanas que, quando descritas em toda sua complexidade, distinguem tão claramente as obras-primas da propaganda.
É especialmente enriquecedora a leitura dos comentários que o Italo Calvino maduro teceu sobre sua obra juvenil: "A memória ou melhor, a experiência, que é a memória mais a ferida que ela lhe deixou, mais a mudança que produziu em você e que o transformou, a experiência, primeiro alimento da obra literária (mas não só dela), riqueza verdadeira do escritor (mas não só dele), logo que deu forma a uma obra literária, definha, destrói-se. O escritor dá por si como o mais pobre dos homens".


Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas

A Trilha dos Ninhos de Aranha
    
Autor: Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (192 págs.)



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