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FORNADA DO MILÊNIO
"Moisés e Arão' debate a necessidade de dar forma a uma "verdade'
GERALD THOMAS
de Nova York
A cortina desceu às 22h em ponto. Entramos no palco, um a um,
para os aplausos (nenhuma vaia,
para minha surpresa e decepção).
Eu me sentia anestesiado de tanta
emoção e nem ouvia o som que vinha da platéia. "Vai pra frente,
vai pra frente, vai pra boca de cena!!!", gritava o "stage manager".
Como num pesadelo, eu via sua
boca se mexendo em câmera lenta,
mas não entendia o que dizia.
Sim, havia estreado "Moisés e
Arão" e, com isso, a minha mais
nervosa expectativa (três anos de
trabalho) tinha chegado ao fim.
As lágrimas que escorriam dos
nossos rostos (eram mais de 300
pessoas no palco) eram a mais
concreta tradução do alívio que
sentimos depois de realizar aquilo
que demorou três anos de preparação. O aplauso nos chega quase
que como um manifesto de apoio.
Juro, nós precisávamos!
Não consegui ir à festa de estréia. Depois de um acontecimento "pesado" como esse, é ainda
mais difícil ouvir as baboseiras ditas pelos convidados (patrocinadores, políticos e alta sociedade),
com seu habitual copo de champanhe na mão. "Foi lindo" ou "Parabéns, a-d-o-r-e-i!" soam mais dissonantes que qualquer nota da
partitura de Schoenberg. Na verdade, as pessoas que nos dizem essas "criativas exclamações" são as
que menos foram tocadas pelo trabalho, e procuram os artistas na
esperança de que algum fotógrafo
de coluna social os clique nesse
instante. Tenho até certa tolerância pra esses protocolos, às vezes
vejo certa graça caricatural nesse
desfile de griffes caríssimas, nesse
baile de penteados incríveis e batons alucinantes.
Fui para casa terminar de fazer
as malas. O processo -cruel, irreal e quase desumano- é sempre
o mesmo. Depois de um envolvimento tão íntimo e comovente
com todas as pessoas que trabalharam comigo, tenho exatamente
oito horas para estar, de malas
prontas, no aeroporto. Arrumo tudo e tento nem pensar no assunto.
Quando as críticas saírem e os rumores sobre o trabalho se espalharem, já estarei no ambiente (estranhamente impessoal) da minha
casa em NY. Minha casa agora
ainda é a Ópera de Graz. Vou
olhar para Graz da janela do
avião com uma imensa saudade.
A mesma que sinto seis ou sete vezes por ano, a cada vez que me separo da minha obra.
Procuro usar as horas de vôo para escrever essa coluna. Tenho
anotações, mas nenhuma me apetece. Numa eu peço desculpas por,
mais uma vez, estar usando a coluna para falar do meu trabalho,
de Schoenberg e de "Moisés e
Arão", temendo que nenhum de
vocês aguente mais esse assunto.
Sorry. Noutra anotação eu havia
feito um traçado entre duas mortes que ocupavam o noticiário do
dia anterior. Uma menina viciada
em heroína havia morrido na praça principal da cidade, de overdose (ou pela combinação fatal entre
químicos feita para baratear a
droga). Um soldado de 18 anos,
embriagado, deu-se um tiro e
morreu. São dois produtos químicos. Ambos modificam, radicalmente, o estado de ser do indivíduo e podem levar ao mesmo fim.
Um é proibido, o outro não.
Não. Não vou escrever sobre esses assuntos. Ainda estou com a
cabeça na ópera. Sei que fiz um
belíssimo trabalho. Aliás, o melhor de toda a minha vida. Pela
primeira vez consegui encenar a
"origem" de um tema (a discussão
entre o espiritualismo e o materialismo) juntamente com suas "consequências devastadoras". E o fiz
sem muitos efeitos cênicos, sem
muito "spielbergianismo". De fato, o debate entre os dois irmãos
bíblicos é direto e diz respeito a cada e qualquer artista vivo. Ele não
é diferente da questão básica que
acompanha a filosofia de todos os
tempos. Mas, nesse século da forma e do material industrial de
consumo, ele se fez mais visível por
meio dos incontáveis movimentos
de artes plásticas.
O debate gira em torno da necessidade de dar -ou não- forma a
um deus, a um pensamento, a
uma "verdade". Moisés acha que
não, pois a verdade é invisível, intocável. Arão acha que sim, que as
pessoas precisam de uma imagem
à qual associar sua crença. A problemática, como se vê, é um enigma, uma dor de cabeça para o encenador, pois o teatro é, antes de
mais nada, a própria "fisicalização" da palavra e da imagem.
Na minha encenação, o rosto e o
figurino de Moisés faziam com
que ele se parecesse um pouco com
Bertolt Brecht, o autor e encenador revolucionário que devotou a
sua obra ao pensamento livre dos
preconceitos e da ignorância que
geram toda a estupidez da humanidade. Arão, mais preocupado
com a forma, a sensação e com o
impacto emocional, parecia mais
com Bob Wilson ou mesmo comigo
(um pouco de auto-ironia não faz
mal a ninguém), e pelo palco caminhava, livremente, a figura legendária de Andy Warhol.
Warhol foi o gênio que conseguiu sintetizar toda a problemática de uma sociedade em processo
de transição entre perder sua inocência (a contracultura) e ir em
busca de uma nova identidade.
Foi ele quem deu vida, legitimou e
derrotou a "verdade" oculta de
Moisés e produziu imagens que espelhavam o povo melhor do que
Arão jamais pôde imaginar.
Warhol fez do trivial um culto,
do amadorismo uma vocação artística, e foi ele que inverteu, para
sempre, os termos "feio" e "lindo".
Seus "15 minutos de fama" dão
credibilidade instantânea a qualquer um que queira e transforma
o próprio indivíduo em culto.
Warhol criou uma verdade assustadora e reproduziu o consumo
obsessivo e a obsessão com o próprio "self" que está no pensamento
de todos. Warhol é o meio-termo
entre Moisés e Arão.
Quando a cortina fechou, 40 segundos após a fala de um Moisés
derrotado ("Palavra, ah, palavra
que me falta"), eu não conseguia
nem sentir as pernas. Quando veio
o primeiro abraço, confesso que
não tive reação alguma.
Se estou feliz? Deveria estar, não
é? Afinal, consegui encenar tudo
aquilo que sempre me obcecou. E,
além de tudo, a produção é um sucesso. As sete próximas apresentações estão esgotadas. Talvez façam
apresentações extras. Sim, deveria
estar muito feliz. Acontece que
não estou.
Muito pelo contrário, é terrível
constatar, aos 44 anos, que o sonho de tanto tempo agora é realidade e não me pertence mais.
Além disso, depois de uma obra
tão completa e tão complexa
quanto essa, o que fazer? O que virá agora? O que poderei discutir
num palco, depois que encenei o
"tema dos temas", a discussão que
engloba todas as discussões?
Será que foi nesse ponto, justamente nesse mesmo ponto, que
Schoenberg constatou que não
conseguiria terminar "Moisés e
Arão" e deixou a questão em aberto, com sua palavra perdida na
memória? Depois de iluminar cada degrau do complexo processo
de rompimento com a música harmônica, estabelecida, acadêmica e
"aceitável", Schoenberg virou
Moisés e se isolou (ou foi isolado)
no topo de uma montanha. Um retiro. Um afastamento que era para
ser temporário e se eternizou. Seu
isolamento criou moda, e a arte
desse século seguiu seu caminho,
isolou-se, escondeu-se, camuflou-
se. Se hoje existe um absoluto divórcio entre arte e público, ele nada mais é que uma anomalia criada por falsos Schoenbergs, falsos
Duchamps e falsos Joyces.
Mas assim como Moisés, Schoenberg tinha a intenção de descer da
montanha e, quem sabe, quebrar
seus mandamentos, ou jogar sua
partitura no lixo.
Beco sem saída? De jeito nenhum. Nessas últimas duas horas
de vôo recupero o ânimo. Graz,
Moisés e Arão já estão no passado.
Por mais estranha que seja essa
minha vida de emoções monumentais e passageiras, resta a alegria de continuar trabalhando,
criando problemas. Afinal, encho-
me de esperança quando lembro
que a palavra que faltou a Moisés
e a Schoenberg foi encontrada
duas décadas mais tarde por Samuel Beckett, no lixo.
²
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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