São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
"Moisés e Arão' debate a necessidade de dar forma a uma "verdade'

GERALD THOMAS
de Nova York

A cortina desceu às 22h em ponto. Entramos no palco, um a um, para os aplausos (nenhuma vaia, para minha surpresa e decepção). Eu me sentia anestesiado de tanta emoção e nem ouvia o som que vinha da platéia. "Vai pra frente, vai pra frente, vai pra boca de cena!!!", gritava o "stage manager". Como num pesadelo, eu via sua boca se mexendo em câmera lenta, mas não entendia o que dizia.
Sim, havia estreado "Moisés e Arão" e, com isso, a minha mais nervosa expectativa (três anos de trabalho) tinha chegado ao fim. As lágrimas que escorriam dos nossos rostos (eram mais de 300 pessoas no palco) eram a mais concreta tradução do alívio que sentimos depois de realizar aquilo que demorou três anos de preparação. O aplauso nos chega quase que como um manifesto de apoio. Juro, nós precisávamos!
Não consegui ir à festa de estréia. Depois de um acontecimento "pesado" como esse, é ainda mais difícil ouvir as baboseiras ditas pelos convidados (patrocinadores, políticos e alta sociedade), com seu habitual copo de champanhe na mão. "Foi lindo" ou "Parabéns, a-d-o-r-e-i!" soam mais dissonantes que qualquer nota da partitura de Schoenberg. Na verdade, as pessoas que nos dizem essas "criativas exclamações" são as que menos foram tocadas pelo trabalho, e procuram os artistas na esperança de que algum fotógrafo de coluna social os clique nesse instante. Tenho até certa tolerância pra esses protocolos, às vezes vejo certa graça caricatural nesse desfile de griffes caríssimas, nesse baile de penteados incríveis e batons alucinantes.
Fui para casa terminar de fazer as malas. O processo -cruel, irreal e quase desumano- é sempre o mesmo. Depois de um envolvimento tão íntimo e comovente com todas as pessoas que trabalharam comigo, tenho exatamente oito horas para estar, de malas prontas, no aeroporto. Arrumo tudo e tento nem pensar no assunto. Quando as críticas saírem e os rumores sobre o trabalho se espalharem, já estarei no ambiente (estranhamente impessoal) da minha casa em NY. Minha casa agora ainda é a Ópera de Graz. Vou olhar para Graz da janela do avião com uma imensa saudade. A mesma que sinto seis ou sete vezes por ano, a cada vez que me separo da minha obra.
Procuro usar as horas de vôo para escrever essa coluna. Tenho anotações, mas nenhuma me apetece. Numa eu peço desculpas por, mais uma vez, estar usando a coluna para falar do meu trabalho, de Schoenberg e de "Moisés e Arão", temendo que nenhum de vocês aguente mais esse assunto.
Sorry. Noutra anotação eu havia feito um traçado entre duas mortes que ocupavam o noticiário do dia anterior. Uma menina viciada em heroína havia morrido na praça principal da cidade, de overdose (ou pela combinação fatal entre químicos feita para baratear a droga). Um soldado de 18 anos, embriagado, deu-se um tiro e morreu. São dois produtos químicos. Ambos modificam, radicalmente, o estado de ser do indivíduo e podem levar ao mesmo fim. Um é proibido, o outro não.
Não. Não vou escrever sobre esses assuntos. Ainda estou com a cabeça na ópera. Sei que fiz um belíssimo trabalho. Aliás, o melhor de toda a minha vida. Pela primeira vez consegui encenar a "origem" de um tema (a discussão entre o espiritualismo e o materialismo) juntamente com suas "consequências devastadoras". E o fiz sem muitos efeitos cênicos, sem muito "spielbergianismo". De fato, o debate entre os dois irmãos bíblicos é direto e diz respeito a cada e qualquer artista vivo. Ele não é diferente da questão básica que acompanha a filosofia de todos os tempos. Mas, nesse século da forma e do material industrial de consumo, ele se fez mais visível por meio dos incontáveis movimentos de artes plásticas.
O debate gira em torno da necessidade de dar -ou não- forma a um deus, a um pensamento, a uma "verdade". Moisés acha que não, pois a verdade é invisível, intocável. Arão acha que sim, que as pessoas precisam de uma imagem à qual associar sua crença. A problemática, como se vê, é um enigma, uma dor de cabeça para o encenador, pois o teatro é, antes de mais nada, a própria "fisicalização" da palavra e da imagem.
Na minha encenação, o rosto e o figurino de Moisés faziam com que ele se parecesse um pouco com Bertolt Brecht, o autor e encenador revolucionário que devotou a sua obra ao pensamento livre dos preconceitos e da ignorância que geram toda a estupidez da humanidade. Arão, mais preocupado com a forma, a sensação e com o impacto emocional, parecia mais com Bob Wilson ou mesmo comigo (um pouco de auto-ironia não faz mal a ninguém), e pelo palco caminhava, livremente, a figura legendária de Andy Warhol.
Warhol foi o gênio que conseguiu sintetizar toda a problemática de uma sociedade em processo de transição entre perder sua inocência (a contracultura) e ir em busca de uma nova identidade. Foi ele quem deu vida, legitimou e derrotou a "verdade" oculta de Moisés e produziu imagens que espelhavam o povo melhor do que Arão jamais pôde imaginar.
Warhol fez do trivial um culto, do amadorismo uma vocação artística, e foi ele que inverteu, para sempre, os termos "feio" e "lindo". Seus "15 minutos de fama" dão credibilidade instantânea a qualquer um que queira e transforma o próprio indivíduo em culto. Warhol criou uma verdade assustadora e reproduziu o consumo obsessivo e a obsessão com o próprio "self" que está no pensamento de todos. Warhol é o meio-termo entre Moisés e Arão.
Quando a cortina fechou, 40 segundos após a fala de um Moisés derrotado ("Palavra, ah, palavra que me falta"), eu não conseguia nem sentir as pernas. Quando veio o primeiro abraço, confesso que não tive reação alguma.
Se estou feliz? Deveria estar, não é? Afinal, consegui encenar tudo aquilo que sempre me obcecou. E, além de tudo, a produção é um sucesso. As sete próximas apresentações estão esgotadas. Talvez façam apresentações extras. Sim, deveria estar muito feliz. Acontece que não estou.
Muito pelo contrário, é terrível constatar, aos 44 anos, que o sonho de tanto tempo agora é realidade e não me pertence mais. Além disso, depois de uma obra tão completa e tão complexa quanto essa, o que fazer? O que virá agora? O que poderei discutir num palco, depois que encenei o "tema dos temas", a discussão que engloba todas as discussões?
Será que foi nesse ponto, justamente nesse mesmo ponto, que Schoenberg constatou que não conseguiria terminar "Moisés e Arão" e deixou a questão em aberto, com sua palavra perdida na memória? Depois de iluminar cada degrau do complexo processo de rompimento com a música harmônica, estabelecida, acadêmica e "aceitável", Schoenberg virou Moisés e se isolou (ou foi isolado) no topo de uma montanha. Um retiro. Um afastamento que era para ser temporário e se eternizou. Seu isolamento criou moda, e a arte desse século seguiu seu caminho, isolou-se, escondeu-se, camuflou- se. Se hoje existe um absoluto divórcio entre arte e público, ele nada mais é que uma anomalia criada por falsos Schoenbergs, falsos Duchamps e falsos Joyces.
Mas assim como Moisés, Schoenberg tinha a intenção de descer da montanha e, quem sabe, quebrar seus mandamentos, ou jogar sua partitura no lixo.
Beco sem saída? De jeito nenhum. Nessas últimas duas horas de vôo recupero o ânimo. Graz, Moisés e Arão já estão no passado. Por mais estranha que seja essa minha vida de emoções monumentais e passageiras, resta a alegria de continuar trabalhando, criando problemas. Afinal, encho- me de esperança quando lembro que a palavra que faltou a Moisés e a Schoenberg foi encontrada duas décadas mais tarde por Samuel Beckett, no lixo.
²

E-mail: geraldthomas@uol.com.br


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