São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
Curador fala das diferenças entre a visão brasileira de antropofagia e a noção européia de canibalismo
Densidade do modernismo orienta Bienal

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local


A Ilustrada publica hoje a segunda parte da entrevista realizada com Paulo Herkenhoff, o curador da 24ª Bienal, que parte da discussão do conceito de antropofagia, que discute aqui o princípio de densidade, que permeia esta edição do evento, e as diferenças entre canibalismo e antropofagia.
A Bienal é dividida em três segmentos: representações nacionais (em que cada país escolhe seu artista), mostra "Roteiros" (em que curadores internacionais dividiram o mundo em sete regiões e selecionaram artistas) e núcleo histórico, com mostras de Van Gogh, Tarsila, Oiticica, Eva Hesse, Bacon, Siqueiros, Reverón e outros.

Folha - Você diz que antropofagia não é o tema exclusivo da Bienal, mas que ela se articula sobre uma idéia de "densidade". Como seria isso?
Paulo Herkenhoff -
Nós partimos da idéia de espessura do olhar. O olhar é uma atividade complexa, que não se resume à marca causada no olho. Tratamos o olhar como um processo complexo de apreensão e compreensão do mundo e suas relações. A densidade não seria um tema, mas uma atitude a ser reclamada na Bienal.
Mas qual densidade podemos oferecer? Um nível seria o catálogo, que, no meu entendimento, é onde a reflexão se compartilha.
Ele deve ter textos que agreguem perspectivas que não estejam na exposição e que se sejam textos com novas reflexões.
Da mesma forma que a mostra não segue o formato de construir espaços uniformes, como em forminhas de gelo, cada página também recebeu um tratamento que dá uma dinâmica ao próprio livro.
Folha - E por que partir de antropofagia?
Herkenhoff -
Perguntamos qual seria um momento de densidade da arte brasileira. Sabemos que o modernismo alterou a face do país e dentro dele há um momento de singularidade que é a antropofagia. Essa me pareceu a questão adequada e que mobilizaria a Bienal. Eu desejava fazer uma Bienal que não viesse a confirmar conceitos ou temas já consagrados na história da arte européia ou americana. Eu queria que o ponto de partida fosse a tradição brasileira.
Desde o início, a antropofagia não é um movimento restrito a uma expressão, mas já nasce como literatura e pintura, já nasce aberta para se articular com outras manifestações da história da arte.
No processo cultural brasileiro, a antropofagia foi muito mais uma atitude que partia de determinados parâmetros, como a aceitação e a incorporação das diferenças para transformá-las em sua própria linguagem.
Ao mesmo tempo, ela não tinha uma forma fixa, não era maniqueísta e trazia uma certa perversidade, que exigia do artista um processo de invenção da linguagem permanente. O modo de ser de Oiticica não é o modo de Glauber, como não é o de Caetano Veloso, Lygia Clark ou Tunga. Nunca existe uma confirmação, mas existe sempre um fundo de atitude.
Folha - Você relaciona a antropofagia brasileira com a visão européia de canibalismo, mas se tratam de dois termos distintos...?
Herkenhoff -
A primeira idéia da curadoria foi não ilustrar um ponto de vista já consagrado ou que fosse tão amplo que englobasse tudo. Quando você diz que os termos são diferentes, diz que eles podem ser definidos como territórios.
Desde o início foi necessário uma compreensão etimológica das duas palavras. O canibalismo é uma corruptela de "caraíba", que era povo do Caribe muito feroz. Não se trata de uma relação com a palavra carne.
Antropofagia significa uma composição entre "antropos", que é homem, e "fagia", comer. Mas nessa composição do termo já existe uma incorporação simbólica, já que antropofagia aí não significa carne, mas um ser constituído de corpo e de qualidades psicológicas, morais e culturais.
O canibalismo já foi descrito por Staden, que é o primeiro sobrevivente a imprimir suas memórias, ou mesmo Montaige, que entendeu que havia relatividade entre os valores das diversas sociedades.
Se a Europa entendia o canibalismo como uma prática bárbara, ela também se compreende como capaz de atos mais bárbaros ainda. Isso chega até a produção de Yves Klein. Existe uma reflexão crítica que acompanha o estarrecimento da massa frente a esses atos.
Quando as disputas entre católicos e protestantes sobre a eucaristia se acirram na França Antártica, na baía de Guanabara, isso se trata do primeiro debate filosófico no Brasil, colocava em jogo a Eucaristia, que é um rito simbolicamente canibal, já que se trata de comer a carne do filho de Deus. Alguns protestantes foram executados por isso e são representados como canibais, por seus atos violentos.
Antropofagia e canibalismo são duas questões diferentes, mas que trabalham com ambiguidades que se interpenetram.
A função foi criar óticas em que se pudesse identificar canibalismo e antropofagia e perceber diferenças de uma fala à outra, de um espaço ao outro. Vai existir sempre a fuga de uma idéia que possa enlatar os dois conceitos.
²

Evento: 24ª Bienal de Arte de São Paulo Onde: Pavilhão da Bienal (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº). Entrada pelos portões 3 e 4 do parque Ibirapuera Quando: de terça a sexta, das 9h às 13h (público escolar, com agendamento pelo tel. 0800-11-1951) e das 13h às 21h (público em geral). Sábados e domingos, das 10h às 22h (público em geral) Quanto: de terça a sexta: R$ 10. Sábados e domingos: R$ 10 (das 10h às 13h) e R$ 16 (das 13h às 22h). Meia entrada para estudantes com carteirinha, maiores de 65 anos e comerciários com carteirinha do Sesc e crianças entre 6 e 12 anos (com os pais ou responsáveis). Entrada franca para menores de seis anos Televendas: os ingressos podem ser comprados pelo tel. 0800-11-1951, sendo entregues no local solicitado
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