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"Lavoura Arcaica", filme de Luiz Fernando Carvalho que estréia hoje, surgiu durante crise
A lavoura do artista
MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO
Luiz Fernando Carvalho, 41,
guarda no escritório de seu apartamento, na Gávea, no Rio de Janeiro, os cadernos nos quais anotou os filmes a que assistiu, há
mais de 20 anos, na cinemateca
do Museu de Arte Moderna. São
anotações minuciosas sobre iluminação, roteiro e movimentos
de câmera.
"Eu não era um cinéfilo", lembra Carvalho, segurando um pequeno caderno com a página
aberta no que escreveu sobre
"Aurora", dirigido por F.W. Murnau em 1927. "Não pensava em
ser cineasta: ia ver os clássicos como quem vai assistir a uma boa
aula."
Carvalho não sabia o que queria. Tinha talento para desenho e
ilustrava jornais de psicanálise.
Gostava de arquitetura, mas acabou reduzindo o currículo às aulas de história da arte.
Fez vestibular para letras e logo
trancou a matrícula. Lia Camus,
Kafka e Dostoiévski. Fascinado
por teorias estéticas, seu escritório está atulhado de livros de Kantor, Meyerhold, Nietszche e Artaud.
No início dos anos 80, deslumbrou-se com Roland Barthes. Um
intelectual teria escrito uma tese
sobre semiótica. Carvalho fez um
filme. Inspirado em "Fragmentos
de um Discurso Amoroso", de
Barthes, seu curta-metragem "A
Espera" ganhou prêmios em festivais no Brasil, no Canadá e na Espanha.
O passo seguinte, fosse Carvalho um cineasta, seria filmar um
longa-metragem. O passo não foi
dado. Sem planejar, o barthiano
começou a trabalhar na Globo.
"Entrei na emissora junto com a
boiada", conta, referindo-se ao
grupo de jovens publicitários e
autores de curta-metragem que
integrou o grupo responsável pelo programa "Quarta Nobre".
Carvalho foi assistente de direção de Walter Avancini em
"Grande Sertão: Veredas" e dirigiu duas adaptações de Ariano
Suassuna, "Uma Mulher Vestida
de Sol" e "A Farsa da Boa Preguiça". Fez fama de diretor dado a
rompantes, lento e perfeccionista.
Ousadia
No seu segundo encontro com
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, pegou uma revista qualquer
sobre a mesa do então vice-presidente executivo da rede e sentenciou: "Boni, essa revista, só com
fotografias paradas, tem mais
apuro imagético que a Globo inteira". Não era pouco, em matéria
de ousadia. Boni dirigia a emissora com mão de ferro. Sua frase
mais conhecida, infalível quando
lhe mostravam um programa novo, era: "Está uma merda, faz de
novo".
Os olhos de Boni brilharam,
lembra Carvalho. "Concordo. O
que você precisa para melhorar o
nosso padrão visual?", perguntou-lhe o executivo.
Carvalho respondeu que precisava de uma maquiadora. Não
uma qualquer: uma que tivesse
ganho o Oscar, para ensinar como
fazer maquiagem de época verossímil e sutil. A Globo contratou
uma que trabalhara com Steven
Spielberg.
Carvalho firmou-se na Globo
com as novelas "Renascer", de
1993, e "O Rei do Gado", de 1996, e
a minissérie "Os Maias", de 2001.
Os três programas tiveram produção conturbada. "Renascer"
estreou bem e perdeu o pique. De
"O Rei do Gado", Carvalho conseguiu dirigir os sete primeiros capítulos.
Entrou em crise criativa e se
afastou da novela. "Os Maias",
concebido para durar 20 capítulos, foi espichado por motivos industriais para mais de 40. Sua trilha sonora não ficou pronta para a
estréia.
Com a crise de "O Rei do Gado",
Carvalho mergulhou na leitura de
livros de ficção. Queria uma que
renovasse a sua vontade de criar.
Achou "Lavoura Arcaica" e o leu
em uma noite. Encontrou no livro
de Raduan Nassar o que queria:
"Um romance em que os personagens são fruto de vários tempos, um universo mítico denso e
poético", afirma.
Fantasmas
O diretor admite que o livro tocou em fantasmas de sua psique.
Sua mãe morreu quando tinha
quatro anos. "Só tenho na memória cinco imagens dela", diz, especulando em seguida que talvez tenha insistido em ter Juliana Carneiro da Cunha no filme porque a
atriz lhe lembra de sua mãe. Seu
pai, engenheiro e pintor, também
já morreu. "Sinto muita falta dele,
de podermos conversar", diz.
Antes das filmagens, Carvalho
se enfurnou durante três meses
com o elenco numa fazenda no
interior paulista.
Fez com que todos aprendessem a arar a terra, a preparar pratos libaneses e tivessem aulas de
religião com Leonardo Boff. O roteiro é uma edição de "Lavoura
Arcaica" com anotações em todas
as páginas.
Carvalho não decidiu ainda o
que fará em seguida. Não tem nenhum projeto fechado para a televisão ou para o cinema.
Considera impossível uma produção contínua de alto nível na televisão. "Mas acho que dá para
abrir espaços de comunicação na
TV, de levar verdade e dignidade
a milhões de espectadores que
não têm acesso a quase nenhum
tipo de arte", diz.
Quanto ao cinema, não está disposto a fazer concessões. Já recusou vários convites para filmar,
inclusive de atores famosos. "Se o
filme não nasce de uma necessidade de expressão, não há por que
fazê-lo", diz.
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