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ANÁLISE
Crônica de surtos e colapsos
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
"Cinema Brasileiro, de "O Pagador de Promessas' a "Central do
Brasil'", organizado pelo crítico de
cinema e historiador Amir Labaki,
reúne 50 resenhas escritas por diversos críticos (e publicadas, em
sua maioria, na Folha, embora cinco dos artigos, feitos especialmente para o volume, fossem inéditos)
sobre 50 filmes brasileiros realizados no período que vai de 61 a 98.
A publicação do livro, com seus
textos em português e inglês e sua
rica iconografia, coincide com a
grande retrospectiva do cinema
brasileiro que se inicia no MoMA
de Nova York.
O período coberto tanto pelo livro quanto pela retrospectiva, com
todos os altos e baixos (cujo balanço só agora pode começar a ser
realmente feito), é, sem dúvida, o
mais importante da cinematografia nacional. Com duas ou três exceções, se tanto, o cinema brasileiro anterior aos anos 60 é algo de interesse meramente documental.
Quatro décadas depois da Semana de Arte Moderna, numa época
em que as obras centrais da ficção e
da poesia brasileira já haviam sido
publicadas, mas quando a MPB estava entrando nos seus dois decênios e meio de relevância, quando
a dramaturgia virava coisa séria
neste país, quando as universidades haviam se tornado centros de
debate até mesmo de idéias, o cinema também resolveu (ou conseguiu) se transformar num verdadeiro produto cultural e político,
objeto de discussões intensas, móvel de polêmicas, catalisador de
tendências e movimentos.
Assim, muito da argumentação
que, em outros países, encontrou
seu lugar adequado na celulose dos
romances, das revistas especializadas ou dos tratados filosóficos, sociológicos etc., acabou, entre nós,
alojando-se no celulóide (e também no vinil dos LPs).
Como não poderia deixar de ser,
a crítica acompanhou essa "crônica de surtos e colapsos" (de que fala Labaki na introdução), com
amor e ódio concomitantes, com
paixão (e, às vezes, compaixão),
mas, até os primórdios da presente
década, com fidelidade e insistência que beiravam o obsessivo.
O resultado é que uma seleção de
artigos publicados num único jornal, mesmo quando tenham sido
escritos por personalidades e temperamentos tão diferentes quanto
Inácio Araujo, Ismail Xavier, Orlando Fassoni, Marcelo Coelho,
Luciano Ramos, José Geraldo Couto, Lúcia Nagib, Carlos Reichenbach, Arnaldo Jabor, o próprio organizador e outros críticos, mesmo que tenham saído num intervalo de mais de 30 anos, mesmo
que entre seus autores haja cineastas e escritores, jornalistas e professores universitários, ainda assim entremostram um fundo comum de preocupações e expectativas -ainda falam, apesar da diversidade de pronúncias, a mesma
língua.
Isso confere ao volume uma inesperada unidade, e deve ser creditado a Labaki o mérito de ter mantido fora de sua coletânea duas das
pragas que sempre assolaram nossa crítica: o ufanismo e a cobrança
ideológica.
Outro mérito da coletânea (organizada de acordo com a cronologia
dos filmes e subdividida em seções
dedicadas, respectivamente, ao cinema novo, ao cinema marginal,
aos anos da Embrafilme e aos tempos atuais) é ter alcançado um
bom equilíbrio entre as resenhas
antigas, escritas "no calor da hora", e aquelas que, publicadas anos
após a estréia dos filmes em questão, beneficiam-se do distanciamento temporal.
Um artigo de 1964, no qual B. J.
Duarte, comentando "Deus e o
Diabo na Terra do Sol", de Glauber
Rocha, afirma que "seu filme é algo
de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica..." e "até
agora, tudo quanto apregoa o "cinema novo' brasileiro ou é algo
muito velho, ou algo de muito
ruim", mais do que injusto, soa-nos hoje equivocado.
Poucas páginas depois, no entanto, ao reavaliar, em 96, "São
Paulo S/A" (1965), de Luís Sérgio
Person, Carlos Reichenbach observa que "a ação do tempo talvez
seja a única maneira de atestar
uma verdadeira obra-prima". E a
convivência, entre duas capas, de
abordagens como essas ilustra os
dilemas da recepção crítica e a trajetória não só do cinema, mas do
gosto dos cinéfilos.
Uma das piores consequências
da deplorável (e aparentemente
interminável) rixa entre as intelectualidades universitária e jornalística (que, todavia, frequentemente
se confundem) é o preconceito,
hoje em dia já enraizado (e muito
alardeado justamente pelos jornalistas), segundo o qual textos escritos originalmente para a imprensa
não merecem a dignidade de ascender ao estado de livro.
"Cinema Brasileiro" prova que
não é este o caso, e, na concisão de
seus artigos, na variedade de suas
abordagens, no modo de acordo
com o qual a cronologia e as filmografias do volume apresentam as
informações necessárias, cumpre
perfeitamente tanto o papel de
uma breve obra historiográfica
quanto o de um manual prático.
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