São Paulo, segunda, 9 de novembro de 1998

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ANÁLISE
Crônica de surtos e colapsos

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

"Cinema Brasileiro, de "O Pagador de Promessas' a "Central do Brasil'", organizado pelo crítico de cinema e historiador Amir Labaki, reúne 50 resenhas escritas por diversos críticos (e publicadas, em sua maioria, na Folha, embora cinco dos artigos, feitos especialmente para o volume, fossem inéditos) sobre 50 filmes brasileiros realizados no período que vai de 61 a 98.
A publicação do livro, com seus textos em português e inglês e sua rica iconografia, coincide com a grande retrospectiva do cinema brasileiro que se inicia no MoMA de Nova York.
O período coberto tanto pelo livro quanto pela retrospectiva, com todos os altos e baixos (cujo balanço só agora pode começar a ser realmente feito), é, sem dúvida, o mais importante da cinematografia nacional. Com duas ou três exceções, se tanto, o cinema brasileiro anterior aos anos 60 é algo de interesse meramente documental.
Quatro décadas depois da Semana de Arte Moderna, numa época em que as obras centrais da ficção e da poesia brasileira já haviam sido publicadas, mas quando a MPB estava entrando nos seus dois decênios e meio de relevância, quando a dramaturgia virava coisa séria neste país, quando as universidades haviam se tornado centros de debate até mesmo de idéias, o cinema também resolveu (ou conseguiu) se transformar num verdadeiro produto cultural e político, objeto de discussões intensas, móvel de polêmicas, catalisador de tendências e movimentos.
Assim, muito da argumentação que, em outros países, encontrou seu lugar adequado na celulose dos romances, das revistas especializadas ou dos tratados filosóficos, sociológicos etc., acabou, entre nós, alojando-se no celulóide (e também no vinil dos LPs).
Como não poderia deixar de ser, a crítica acompanhou essa "crônica de surtos e colapsos" (de que fala Labaki na introdução), com amor e ódio concomitantes, com paixão (e, às vezes, compaixão), mas, até os primórdios da presente década, com fidelidade e insistência que beiravam o obsessivo.
O resultado é que uma seleção de artigos publicados num único jornal, mesmo quando tenham sido escritos por personalidades e temperamentos tão diferentes quanto Inácio Araujo, Ismail Xavier, Orlando Fassoni, Marcelo Coelho, Luciano Ramos, José Geraldo Couto, Lúcia Nagib, Carlos Reichenbach, Arnaldo Jabor, o próprio organizador e outros críticos, mesmo que tenham saído num intervalo de mais de 30 anos, mesmo que entre seus autores haja cineastas e escritores, jornalistas e professores universitários, ainda assim entremostram um fundo comum de preocupações e expectativas -ainda falam, apesar da diversidade de pronúncias, a mesma língua.
Isso confere ao volume uma inesperada unidade, e deve ser creditado a Labaki o mérito de ter mantido fora de sua coletânea duas das pragas que sempre assolaram nossa crítica: o ufanismo e a cobrança ideológica.
Outro mérito da coletânea (organizada de acordo com a cronologia dos filmes e subdividida em seções dedicadas, respectivamente, ao cinema novo, ao cinema marginal, aos anos da Embrafilme e aos tempos atuais) é ter alcançado um bom equilíbrio entre as resenhas antigas, escritas "no calor da hora", e aquelas que, publicadas anos após a estréia dos filmes em questão, beneficiam-se do distanciamento temporal.
Um artigo de 1964, no qual B. J. Duarte, comentando "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, afirma que "seu filme é algo de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica..." e "até agora, tudo quanto apregoa o "cinema novo' brasileiro ou é algo muito velho, ou algo de muito ruim", mais do que injusto, soa-nos hoje equivocado.
Poucas páginas depois, no entanto, ao reavaliar, em 96, "São Paulo S/A" (1965), de Luís Sérgio Person, Carlos Reichenbach observa que "a ação do tempo talvez seja a única maneira de atestar uma verdadeira obra-prima". E a convivência, entre duas capas, de abordagens como essas ilustra os dilemas da recepção crítica e a trajetória não só do cinema, mas do gosto dos cinéfilos.
Uma das piores consequências da deplorável (e aparentemente interminável) rixa entre as intelectualidades universitária e jornalística (que, todavia, frequentemente se confundem) é o preconceito, hoje em dia já enraizado (e muito alardeado justamente pelos jornalistas), segundo o qual textos escritos originalmente para a imprensa não merecem a dignidade de ascender ao estado de livro.
"Cinema Brasileiro" prova que não é este o caso, e, na concisão de seus artigos, na variedade de suas abordagens, no modo de acordo com o qual a cronologia e as filmografias do volume apresentam as informações necessárias, cumpre perfeitamente tanto o papel de uma breve obra historiográfica quanto o de um manual prático.



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