São Paulo, quarta-feira, 09 de dezembro de 2009

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MARCELO COELHO

O declínio moral do panetone


Logo a farofa natalina terá "gotas" de chocolate, e o peru com ele será recheado


DESDE QUE me dou por gente ouço críticas ao consumismo natalino. "Não existe mais nenhum espírito cristão... É só comércio", dizia minha mãe, por volta de 1965. A palavra "consumo" ainda não estava em voga.
Não tenho motivos, portanto, para reclamar da "descaracterização" do Natal.
Mas tenho algo a dizer sobre a descaracterização do panetone. Aqui, sim, o fenômeno é grave, relativamente recente e irreversível. Não me refiro aos panetones do governador Arruda, cuja imaterialidade, até o momento, não deixa de trazer um apelo ao mínimo de fé e misticismo que ainda se aninha no coração humano.
Falo dos panetones de verdade, os que se apalpam, cheiram e comem nesta época do ano.
Nunca foram a melhor coisa do Natal; quando criança, eu tampouco dava bola para amêndoas, castanhas e avelãs.
O sabor de frutas cristalizadas talvez não seja o mais atraente ao paladar infantil: a beleza daqueles cubos de cidra verde, raros no meio de algumas passas amarelas e pretas, trazia à boca uma certa decepção escorregadia e saponácea. A massa, pronta a ressecar-se, bastante queimada na parte da baixo, nada mais era, para mim, que a de um pão doce de padaria.
O panetone, enfim, estava na categoria do sorvete de creme, do arroz-doce, do manjar branco, do doce de batata-doce, do incompreensível sequilho, do chatíssimo biscoito amanteigado: coisas de velho, prazeres pálidos, católicos, parentes de papas e mingaus.
Só mais tarde comecei a gostar de panetones. A verdade é que melhoraram muito: a química progrediu, tornando-os mais perfumados e macios, com mais frutas, menos casca preta. Melhoraram. E depois entraram num processo de completo declínio.
Declínio moral, faço questão de frisar. Ético, espiritual, deontológico. A semente da corrupção começou quando foi inventado o chocotone.
O consumidor, como bem sabem os fabricantes, não resiste ao chocolate. Imagino que as vendas de panetone não andassem lá essas coisas. Era preciso conquistar novos mercados; as crianças, que nada encontravam de interessante nas frutas cristalizadas, foram seduzidas.
Os pingos (ou melhor, as "gotas") de chocolate entraram na massa do panetone como os soldados gregos no cavalo de Troia. A praça foi então conquistada cruelmente.
Hoje, não basta o chocotone. Vejo, nos anúncios, uma Pandora de versões, variações, heresias e blasfêmias. O panetone de Prestígio, por exemplo. Já não bastava o ovo de Páscoa?
Antes liso, puro, perfeito como uma escultura de Brancusi, o ovo de Páscoa empipocou-se de "krispinhos" de arroz, engravidou de marshmal-low, regurgita amendoins, dá à luz Barbies e bonequinhos de Homem-Aranha. O tradicional panetone, antes vetusto e inexpressivo como um doge de Veneza, calvo e redondo como um cardeal milanês, viu-se revestido de um gorro de chocolate; empapuçou-se de doce de leite; contrai sarampos de goiabada e cataporas de morango.
Panetones de chocolate branco, panetones de brigadeiro, panetones cor-de-rosa. "Prestigiotones", "bananatones", "vienatones". Vi um em que até a massa é de bolo de chocolate.
Rabugices minhas, pode ser. A escolha do cliente se diversifica. Mas o que se ganha em variedade representa, no fundo, uma vitória da uniformização. Gostando-se ou não do panetone tradicional, era uma coisa só, a ser consumida num período determinado do ano. Chocolate se come o ano todo. Reencontrar na mesa natalina o bombom Prestígio, o brigadeiro, o Chokito, não deixa de ser uma perda, desse ponto de vista.
Sou um grande chocólatra, mas ainda assim começo a ficar incomodado. Uma vez que o chocolate é insuperável, passa a ser utilizado universalmente. Já existe macarrão de chocolate, pizza de chocolate e pipoca com chocolate; logo a farofa natalina terá "gotas" de chocolate, e o peru com ele será recheado.
Os cheiros típicos da época do Natal -castanha assada, pinheiro, especiarias, panetone- desaparecerão num tsunami de chocolate derretido. Na melhor das hipóteses, será sempre Páscoa. E escolher entre ovos ou panetones, pamonhas juninas ou frutas da estação, perus ou pizzas de domingo, dará mais ou menos na mesma: tudo terá cobertura de chocolate. Vai ser, digamos assim, como escolher entre partidos políticos: mas esses não se cobrem de chocolate.

coelhofsp@uol.com.br


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