São Paulo, quinta-feira, 09 de dezembro de 2010

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CONTARDO CALLIGARIS

A batalha do Rio


O tráfico está perdendo uma batalha crucial: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens


COM HUMOR negro, os habitantes de São Conrado, Rio, declaram-se moradores do "Baixo Rocinha".
De fato, a favela da Rocinha (com mais de 100 mil habitantes) desce, pelas encostas do Morro Dois Irmãos, até os condomínios de classe média ao redor do Fashion Mall.
Durante a semana passada, em São Conrado, circulava o boato de que os traficantes da Rocinha, receando ser a bola da vez, ameaçariam uma carnificina: se a polícia subir o morro, eles metralhariam as janelas dos prédios.
Várias famílias cogitavam transferir as crianças para casas de parentes em outros bairros.
No sábado, enfim, o delegado Allan Turnowski, chefe da Polícia Civil do Rio, declarou que não há favela carioca que não possa ser invadida e ocupada pelas forças da ordem, as quais têm planos, meios e homens para tomar a Rocinha e o Vidigal dos traficantes. Mais ansiedade em São Conrado? Não foi o que aconteceu. Por quê?
Primeiro, ao longo da semana, constatou-se que, na hora do vamos ver, bravatas à parte, os bandidos da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão tentaram sobretudo salvar a pele e fugir com algum dinheiro na mochila (a deles ou a de policiais cúmplices e corruptos, tanto faz).
Ao mesmo tempo, criou-se uma confiança inédita de que a operação das polícias não seja mais uma incursão em território inimigo para agitar bandeiras lá de cima: desta vez, o Estado vai retomar as favelas cariocas e nelas instalar sua legalidade e seus serviços.
Essa é a esperança, se não a convicção, de quase todos meus interlocutores, amigos, conhecidos ou encontros casuais, de boteco em boteco e de táxi em táxi.
Enquanto isso, em São Paulo, ouço uma manifestação de ceticismo: para quê tudo isso? O tráfico não vai acabar nunca, como não vai acabar a corrupção policial.
Concordo, mas ninguém pretende extirpar o crime; o projeto é de forçá-lo a se modernizar. O que isso pode significar?
O Brasil, sobretudo no Rio, apresenta um modelo peculiar e arcaico de exercício do crime: amplos territórios urbanos são ocupados por gangues, as quais governam centenas de milhares de pessoas, que são cidadãos brasileiros apenas suposta e nominalmente, pois vivem, de fato, sob outra soberania.
Dessas cidades "estrangeiras", enquistadas no território nacional, saem, por exemplo, arrastões que saqueiam praias e ruas antes de voltar ao amparo de suas cidadelas.
O crime se apoderou de áreas que o Estado já abandonara e das quais ele parecia ter desistido de vez.
Talvez pela culpa desse abandono, durante um tempo, vingou a ilusão de que as favelas dominadas pelo crime seriam novos quilombos -lugares de resistência contra o Estado que os abandonou.
Mas não é difícil constatar que a população das favelas atura a presença do tráfico como se atura a ocupação por um exército estrangeiro e sanguinário.
A favela de hoje nunca foi um quilombo secessionário, é apenas uma área ocupada, que vive na espera de sua libertação.
O que seria, então, "modernizar" esse modelo do crime? Pois bem, no resto do mundo moderno, os criminosos não vivem em áreas independentes, ainda menos eles as governam; os criminosos são obrigados a operar na sombra e nas margens da sociedade instituída, escondendo-se em seus interstícios.
É o que se espera que aconteça se as favelas forem reconquistadas e voltarem a ser brasileiras.
Mais uma coisa: é cedo para dizer que o tráfico foi derrotado, mas é verdade que, nestes dias, ele perdeu algo mais importante do que o Complexo do Alemão.
Escondidos no fundo de uma caixa d'água e respirando com um canudinho, fugindo fantasiados de funcionários da prefeitura, mijando-se nas calças na hora da prisão, os traficantes, na debandada, perderam seu glamour.
Em geral, as crianças (que sempre sofrem por serem menores e mais fracas) idealizam facilmente os violentos e marrentos.
Há tempos, elas idealizavam os soldados do tráfico, apenas mais velhos do que elas. De repente, a semana nos ofereceu a imagem de crianças festejando a chegada triunfal e desejada, na favela, de um exército de libertação.
Se essa imagem se confirmar, o tráfico terá perdido a batalha crucial desta guerra: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens.
Reconheça-se que, nessa batalha, um dos maiores aliados das forças brasileiras talvez tenha sido e ainda seja o Capitão Nascimento.

ccalligari@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA
Carlos Heitor Cony



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