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O sadismo e a impunidade da tortura
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
A revista "Veja" desta semana publica uma entrevista com
o corretor de seguros Marcelo
Paixão de Araújo, que torturou
cerca de 30 pessoas durante o
regime militar. Não se arrepende do que fez. Aliás, parece que
neste país ninguém se arrepende de nada.
Araújo conta com grande naturalidade e bom humor sua
participação nas atividades do
12º Regimento de Infantaria do
Exército, de 1968 a 1971. Perguntado se quem tortura age
como um monstro, reagiu indignado: "Não. Essas práticas
eram normais entre nós. Quem
eu achava que era monstro
eram os sádicos. Eu mesmo
afastei dois sargentos. Não queria sádicos trabalhando comigo".
Sem ser sádico, portanto,
Araújo diz que "gostava muito
de aplicar a palmatória" e de
aplicar choques elétricos nos dedos dos presos. Uma de suas vítimas conta: "Marcelo apagava
o cigarro no meu corpo, mas a
pior coisa que fez foi me deitar
no chão, colocar um cabo de
vassoura no meu pescoço e subir em cima". Mas sádico ele diz
que não era.
Caetano Veloso celebrizou a
idéia de que "de perto, ninguém
é normal". Tendo a achar que o
inverso também é verdadeiro.
De perto, qualquer monstro é
normal. Não duvido que, se encontrasse Hitler pessoalmente,
poderia ficar com a impressão
de que se tratava de um cavalheiro de trato afável e conversação interessante. O maníaco
do parque nos incomoda por estar plenamente lúcido e equilibrado durante a maior parte do
tempo.
Não quero discutir aqui se
Araújo é um monstro ou não; o
conteúdo de suas declarações,
do ponto de vista psicológico, é
bastante opaco. O mais espantoso, justamente, não é a monstruosidade de seu comportamento, e sim sua "normalidade". Ou seja, não só o crime de
tortura pode muito bem ser cometido por pessoas normais, como também ser considerado
normal antes, durante e depois
das circunstâncias que supostamente o justificaram.
Passamos, assim, do campo da
especulação psicológica ou psiquiátrica para o do comentário
político e social. Tenho medo,
na verdade, de que essa entrevista da "Veja" termine provocando o efeito paradoxal de diminuir, e não de acentuar, a repulsa da opinião pública diante
dos atos mais odiosos do regime
autoritário.
Há dois aspectos envolvidos
na questão. O primeiro é o da
impunidade. Não questiono
aqui o acordo político que determinou a Lei da Anistia, peça
importante na redemocratização do país. Foram todos anistiados, os torturadores e os torturados. Muito bem. O fato de
ter havido uma "anistia recíproca" certamente facilitou a
transição para o Estado de Direito.
Mas toda decisão política tem
seu preço. A ausência de punição aos torturadores certamente lhes dá moral para nem sequer se arrependerem do que foi
feito. Tudo se justifica: "Era
uma época difícil, você sabe...".
Esse discurso -que dissolve a
abominação individual no "clima político daqueles tempos"- faz do crime quase uma
simples decorrência do calendário, de modo que torturar, em
1971, era como usar calças boca-
de-sino e sapatos plataforma.
Um pouco incômodos, sem
dúvida, os sapatos plataforma.
Não, hoje eu não usaria. Mas, se
eu voltasse àquela época, usaria
de novo. Estou errado? Quem é
você para me dizer isso?
Ficamos sem resposta. O ex-
torturador Araújo é muito honesto, aliás, poderia perfeitamente ter se recusado a torturar
os presos. "É evidente que eu
cumpria ordens. Mas eu aceitei
as ordens." Não é que negue,
portanto, sua responsabilidade
pessoal ao torturar. Simplesmente, a idéia de que cometeu
um crime é que desapareceu
junto com a possibilidade de
haver punição.
Passo a um outro aspecto. Não
é só a referência à "época" que
supostamente neutraliza os
atos de tortura. A tortura parece "normal" porque, não se deve esquecer, ela continua a ser
normal no Brasil. Normalíssima. Estamos fartos de saber que
presos comuns são torturados
diariamente no país.
O discurso de Araújo -a justificação "técnica" da violência- talvez caia um pouco no
vazio também por isso. De resto,
não foi o regime militar quem
inventou o pau-de-arara, nem o
pau-de-arara foi abolido na democracia.
É bem compreensível que
Araújo faça questão de ser reconhecido por suas vítimas. Eis o
que ele conta na entrevista:
"Eventualmente, eu encontro
ex-presos meus, inclusive os que
apanharam. E o relacionamento não é muito ruim, não. Não é
aquele negócio de dar beijinhos
e abraços. Mas é um relacionamento de respeito".
Tendo encontrado um professor a quem torturou, segurou-o
pelo ombro, perguntando: "Você tá bom?". Cito: "Ele disse que
sim e não quis mais conversa.
Mas também não passa batido,
não. Não deixo passar batido".
É como se a vontade de justificar-se, de confirmar o acerto de
suas ações pregressas, tivesse tudo de uma confissão, exceto a
culpa. Transforma-se quase que
numa afirmação de decência
pessoal.
Esse "respeito", essa "decência" e essa "normalização" da
violência mais uma vez sugerem o tema clássico do brasileiro como "homem cordial". Como se sabe, a tese de Sérgio
Buarque de Holanda nunca foi
a de que o brasileiro é pacífico e
gentil por natureza, mas sim a
de que, mesmo na barbárie, nada é entendido em termos impessoais, burocráticos, frios; o
lado pessoal predomina.
Não sei o quanto isso tem de
válido, mas a "cordialidade" é
reconhecível na entrevista. A
um dado momento, Araújo reconhece: "Não é bom tratar um
semelhante dessa forma". Logo
em seguida, dirige-se ao repórter: "Você não quer aproveitar e
comer um biscoitinho?". E pega
um biscoito da travessa que estava em cima da mesa. Dizendo
que, em Minas, não se costumava aplicar a tortura da "geladeira" (deixar o preso numa câmara frigorífica), ele declara:
"O que tinha era o trivial caseiro, o menu mineiro".
Eu acho esses os momentos
mais sinistros da entrevista de
Araújo. Aqui temos o Brasil em
seu estado de perpétua inocência. Num clima de mais absoluta normalidade. E, mesmo
quando se abre o jogo, tudo é
eufemismo, tudo -até mesmo
a barbárie- se interpreta no
diminutivo. Tudo se reduz. Fica
bem caseirinho.
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