São Paulo, quarta, 9 de dezembro de 1998

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O sadismo e a impunidade da tortura

MARCELO COELHO

da Equipe de Articulistas

A revista "Veja" desta semana publica uma entrevista com o corretor de seguros Marcelo Paixão de Araújo, que torturou cerca de 30 pessoas durante o regime militar. Não se arrepende do que fez. Aliás, parece que neste país ninguém se arrepende de nada.
Araújo conta com grande naturalidade e bom humor sua participação nas atividades do 12º Regimento de Infantaria do Exército, de 1968 a 1971. Perguntado se quem tortura age como um monstro, reagiu indignado: "Não. Essas práticas eram normais entre nós. Quem eu achava que era monstro eram os sádicos. Eu mesmo afastei dois sargentos. Não queria sádicos trabalhando comigo".
Sem ser sádico, portanto, Araújo diz que "gostava muito de aplicar a palmatória" e de aplicar choques elétricos nos dedos dos presos. Uma de suas vítimas conta: "Marcelo apagava o cigarro no meu corpo, mas a pior coisa que fez foi me deitar no chão, colocar um cabo de vassoura no meu pescoço e subir em cima". Mas sádico ele diz que não era.
Caetano Veloso celebrizou a idéia de que "de perto, ninguém é normal". Tendo a achar que o inverso também é verdadeiro. De perto, qualquer monstro é normal. Não duvido que, se encontrasse Hitler pessoalmente, poderia ficar com a impressão de que se tratava de um cavalheiro de trato afável e conversação interessante. O maníaco do parque nos incomoda por estar plenamente lúcido e equilibrado durante a maior parte do tempo.
Não quero discutir aqui se Araújo é um monstro ou não; o conteúdo de suas declarações, do ponto de vista psicológico, é bastante opaco. O mais espantoso, justamente, não é a monstruosidade de seu comportamento, e sim sua "normalidade". Ou seja, não só o crime de tortura pode muito bem ser cometido por pessoas normais, como também ser considerado normal antes, durante e depois das circunstâncias que supostamente o justificaram.
Passamos, assim, do campo da especulação psicológica ou psiquiátrica para o do comentário político e social. Tenho medo, na verdade, de que essa entrevista da "Veja" termine provocando o efeito paradoxal de diminuir, e não de acentuar, a repulsa da opinião pública diante dos atos mais odiosos do regime autoritário.
Há dois aspectos envolvidos na questão. O primeiro é o da impunidade. Não questiono aqui o acordo político que determinou a Lei da Anistia, peça importante na redemocratização do país. Foram todos anistiados, os torturadores e os torturados. Muito bem. O fato de ter havido uma "anistia recíproca" certamente facilitou a transição para o Estado de Direito.
Mas toda decisão política tem seu preço. A ausência de punição aos torturadores certamente lhes dá moral para nem sequer se arrependerem do que foi feito. Tudo se justifica: "Era uma época difícil, você sabe...". Esse discurso -que dissolve a abominação individual no "clima político daqueles tempos"- faz do crime quase uma simples decorrência do calendário, de modo que torturar, em 1971, era como usar calças boca- de-sino e sapatos plataforma.
Um pouco incômodos, sem dúvida, os sapatos plataforma. Não, hoje eu não usaria. Mas, se eu voltasse àquela época, usaria de novo. Estou errado? Quem é você para me dizer isso?
Ficamos sem resposta. O ex- torturador Araújo é muito honesto, aliás, poderia perfeitamente ter se recusado a torturar os presos. "É evidente que eu cumpria ordens. Mas eu aceitei as ordens." Não é que negue, portanto, sua responsabilidade pessoal ao torturar. Simplesmente, a idéia de que cometeu um crime é que desapareceu junto com a possibilidade de haver punição.
Passo a um outro aspecto. Não é só a referência à "época" que supostamente neutraliza os atos de tortura. A tortura parece "normal" porque, não se deve esquecer, ela continua a ser normal no Brasil. Normalíssima. Estamos fartos de saber que presos comuns são torturados diariamente no país.
O discurso de Araújo -a justificação "técnica" da violência- talvez caia um pouco no vazio também por isso. De resto, não foi o regime militar quem inventou o pau-de-arara, nem o pau-de-arara foi abolido na democracia.
É bem compreensível que Araújo faça questão de ser reconhecido por suas vítimas. Eis o que ele conta na entrevista: "Eventualmente, eu encontro ex-presos meus, inclusive os que apanharam. E o relacionamento não é muito ruim, não. Não é aquele negócio de dar beijinhos e abraços. Mas é um relacionamento de respeito".
Tendo encontrado um professor a quem torturou, segurou-o pelo ombro, perguntando: "Você tá bom?". Cito: "Ele disse que sim e não quis mais conversa. Mas também não passa batido, não. Não deixo passar batido".
É como se a vontade de justificar-se, de confirmar o acerto de suas ações pregressas, tivesse tudo de uma confissão, exceto a culpa. Transforma-se quase que numa afirmação de decência pessoal.
Esse "respeito", essa "decência" e essa "normalização" da violência mais uma vez sugerem o tema clássico do brasileiro como "homem cordial". Como se sabe, a tese de Sérgio Buarque de Holanda nunca foi a de que o brasileiro é pacífico e gentil por natureza, mas sim a de que, mesmo na barbárie, nada é entendido em termos impessoais, burocráticos, frios; o lado pessoal predomina.
Não sei o quanto isso tem de válido, mas a "cordialidade" é reconhecível na entrevista. A um dado momento, Araújo reconhece: "Não é bom tratar um semelhante dessa forma". Logo em seguida, dirige-se ao repórter: "Você não quer aproveitar e comer um biscoitinho?". E pega um biscoito da travessa que estava em cima da mesa. Dizendo que, em Minas, não se costumava aplicar a tortura da "geladeira" (deixar o preso numa câmara frigorífica), ele declara: "O que tinha era o trivial caseiro, o menu mineiro".
Eu acho esses os momentos mais sinistros da entrevista de Araújo. Aqui temos o Brasil em seu estado de perpétua inocência. Num clima de mais absoluta normalidade. E, mesmo quando se abre o jogo, tudo é eufemismo, tudo -até mesmo a barbárie- se interpreta no diminutivo. Tudo se reduz. Fica bem caseirinho.



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