São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Imaginação crítica


Ensaio de Eduardo Sterzi percorre a tensão entre o trágico e o cômico desde Dante Alighieri até Oswald de Andrade

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"A PROVA dos Nove - Alguma Poesia Moderna e a Tarefa da Alegria", de Eduardo Sterzi, merece comentário que vá além do conteúdo, por si só notável, desse ensaio que cria pontes inesperadas entre Dante Alighieri e o modernismo brasileiro. Ao longo do século 20, a crítica foi deixando de ser mero instrumento de interpretação de texto para se transformar num gênero comparável aos tradicionais. Se -como dito por Haroldo de Campos em "Galáxias"- "escrever sobre escrever é o futuro do escrever", nada mais natural que uma modalidade que fez de ficção e poesia uma "segunda natureza" reivindicasse papel semelhante ao de romances e poemas (bom exemplo são os livros de Blanchot e Barthes, verdadeiros enredos intelectuais).
Desde fins dos anos 80, porém, com o declínio das utopias e a decorrente descrença nos poderes da imaginação, a crítica voltou a ter o papel coadjuvante de tecer comentários eruditos sobre matéria inerte (literatura como produto de consumo da alta cultura). São raríssimos hoje os ensaístas que nos oferecem o que Gerd Bornheim denominou "criatividade da crítica": uma reflexão que consegue "instalar-se na intimidade do elã criativo que dá origem à própria obra de arte". É nessa descrição que se encaixa o trabalho de Sterzi.
Poeta, pesquisador da obra dantesca, ele realiza esse ideal de imaginação crítica que começa por juntar fios aparentemente disparatados para, ao final, fazer com que aquilo que parecia arbitrário ganhe a força de uma necessidade. "A Prova dos Nove" parte de uma carta de autoria controvertida, mas atribuída a Dante, que explica a confluência de elementos cômicos e trágicos na "Divina Comédia", embaralhando as rígidas demarcações dos gêneros clássicos. Se essa "epístola a Cangrande della Scala" vai na direção de uma "redefinição do estatuto da lírica", do "delineamento de uma forma de poesia apta a dar conta da complexidade das noções modernas de individualidade, subjetividade e interioridade", também permite identificar a "tarefa da alegria" que se projeta no futuro como "encontro do homem com sua própria ameaçada humanidade".
A partir daí, Sterzi passa a leituras de momentos da moderna poesia brasileira na qual aparece essa "pulsão utópica", que ora se manifesta em surdina (nos versos de Drummond, João Cabral e contemporâneos como Carlito Azevedo e Marcos Siscar), ora ocupa o coração de uma obra (Oswald de Andrade e Aníbal Machado). Em capítulos e "digressões" atravessados por Benjamin e Agamben (e em litígio com Roberto Schwarz), Sterzi redimensiona o humor e a ironia da poesia brasileira, coloca-a no plano profundo de uma utopia do presente que é, ao mesmo tempo, reconciliação com um mundo sem deuses e resistência à melancolia da vida administrada.


A PROVA DOS NOVE
Autor: Eduardo Sterzi
Editora: Lumme
Quanto: R$ 34 (140 págs.)
Avaliação: ótimo



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