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RESENHA DA SEMANA
Espírito de porco
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Admirar E. M. Cioran
(1911-95), autor de "Exercícios de Admiração", não é uma
tarefa simples. Porque é o lado
vil e demasiado humano que o
pensador de origem romena,
que se mudou para a França em
1937, destaca, não só nos autores
sobre os quais escreve e com os
quais se identifica, nem que seja
por oposição, mas em si mesmo:
"Como as cartas de Rilke, de
que tanto gostava antigamente,
agora me parecem exangues e
insípidas! Nenhuma alusão é
feita nelas ao lado mesquinho da
pobreza. Escritas para a posteridade, sua "nobreza" me repugna.
(...) Fingir-se espírito puro beira
a indecência".
O que fascina Cioran é o confronto sem encantos com o vazio, não sem antes passar pela
consciência do desespero, dos
podres, dos maus sentimentos,
do fracasso e da própria pusilanimidade, como se só assim fosse possível desmascarar a hipocrisia e a monstruosidade em si
e nos outros e revelar o humano
na sua dimensão mais verdadeira:
"Os esforços que fazemos para
nos afirmar, para nos igualar aos
nossos semelhantes e, se possível, superá-los têm razões vis,
inconfessáveis, logo profundas.
As resoluções nobres (...) carecem inevitavelmente de vigor
(...). Tudo pelo que sobressaímos procede de uma origem
obscura e suspeita, de nossas
profundezas verdadeiras".
"O que mais gosto nele é da
confissão dos seus fracassos",
escreve Cioran sobre o ensaísta
italiano Guido Ceronetti. "De
todas as criaturas, as menos insuportáveis são as que odeiam
os homens. Não se deve nunca
fugir de um misantropo." Ou
sobre os próprios exercícios de
admiração: "Só existe uma maneira de louvar: inspirar medo
àquele que exaltamos, fazê-lo
tremer, obrigá-lo a esconder-se
longe da estátua que lhe construímos, forçá-lo, através da hipérbole abundante, a apreciar
sua mediocridade e admiti-la".
O título do livro, que estava esgotado no Brasil e agora é relançado pela Rocco, ganha assim
um outro sentido, se não ambíguo, pelo menos bem mais complexo do que se poderia imaginar à primeira vista.
Além dos textos (ensaios, prefácios e cartas) sobre escritores
admiráveis, como Beckett, Borges e F.Scott Fitzgerald, entre
outros, Cioran faz uma exaltação do pensamento reacionário
de Joseph de Maistre (1753-1821), menos pelo seu conteúdo
absoluto do que por seu efeito
relativo, de circunstância, contra a revolução; menos pelo que
defende o reacionário do que
pela forma e o lugar em que ataca, pelo método, por ser "do
contra" e "cultivar o equívoco":
"A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo
a mola da inspiração".
Para Cioran, é o espírito de
porco, de provocação, que mantém o pensamento vivo e em
movimento permanente contra
as idéias aceitas e consensuais, e
nem por isso menos convencionais. Só o pensamento que vai
na contramão em permanência,
sob o risco de contradições e paradoxos, pode ultrapassar a superfície e as convenções para revelar algo das profundezas.
Vêm daí o valor positivo da
negação e o gosto especial do
pessimista pelos paradoxos como única forma de dizer o que
não pode ser dito: "Para um autor, é um verdadeiro desastre ser
compreendido"; "Só o grau da
nossa desilusão garante a objetividade dos nossos julgamentos.
Mas, sendo a "vida" parcialidade,
erro, ilusão e vontade de ilusão,
emitir julgamentos objetivos
não é passar para o lado da morte?".
Sua analogia entre as idéias e
as revoluções é, nesse caso, paradoxalmente esclarecedora:
"Não há movimento de renovação que, no próprio momento
em que se aproxima do objetivo,
em que se realiza através do Estado, não resvale para o automatismo das velhas instituições e
não tome a forma da tradição.
(...) É o que acontece com as
próprias idéias: quanto mais forem formuladas, explícitas, mais
sua eficácia diminuirá. Uma
idéia clara é uma idéia sem futuro".
O paradoxo passa a ser, então,
a expressão possível e permanente da inquietude, a busca radical e incessante promovida
por uma consciência que sabe
que nunca poderá ser absoluta
ou mesmo achar o que procura,
a não ser pela própria negação:
"Todo escritor verdadeiro faz
um esforço semelhante. É um
destruidor que amplia a existência, que a enriquece minando-a".
Exercícios de Admiração
Exercices d'Admiration
Autor: E. M. Cioran
Tradutor: José Thomaz Brum
Editora: Rocco
Quanto: R$ 18,50 (129 págs.)
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