São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 2000


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"Preso entre Ferragens", primeira peça do autor, escrita há dez anos, ganha finalmente uma montagem que estréia hoje em São Paulo, sob direção de Eliana Fonseca e interpretação de Aury Porto
Bonassi leva ao palco a dor do verbo no asfalto

Rogério Albuquerque/Folha Imagem
O ator Aury Porto passa praticamente todo o espetáculo imobilizado em "Preso Entre Ferragens", escrita por Fernando Bonassi


VALMIR SANTOS
da Redação

A dor tem reticências que a razão desconhece. A ficção, não. Pelo menos, em "Preso entre Ferragens". Tal qual esse rangir de "erres", o único personagem da peça atravessa 55 minutos cuspindo palavras, ora pedaços delas, em meio à agonia da carne comprimida entre ferros e latarias.
O motorista anônimo, 25 a 59 anos, que delira no interior de um Fiat 147 vermelho retorcido, chegou ao papel há dez anos, ou pelo menos o que restou dele, no primeiro texto de Fernando Bonassi para teatro.
Com os solilóquios mantidos praticamente intactos, tem-se a chance de conferir a gênese da temática urbana que vai impregnar a obra do escritor, roteirista e dramaturgo. Uma das rubricas dá a medida da sem-cerimônia com que Bonassi decupa as palavras. Ele vai direto ao ponto, seco, quando explica que o sujeito tem "uma respiração com saliva, catarro e sangue; ofegante, monocórdica, ruidosa".
O autor credita exatamente a essa crispação do papel o hiato de uma década para a estréia da montagem, o que finalmente acontecerá hoje em São Paulo. Entre atores e produtores, inclusive amigos, não foram poucos os que se recusaram a embarcar na história do personagem à beira da morte (os únicos resquícios de expressão física concentram-se na face e num dos braços; pernas, troncos, pescoço, enfim, o resto do corpo está envolvido e comprometido pelas ferragens).
"Eles tinham medo de entrar nessa história e não conseguir sair, de sucumbir ao texto e enlouquecer, de morrer, de atrair mazelas e morbidez para a vida", tenta diagnosticar Bonassi, 37. Os baluartes foram a diretora Eliana Fonseca e o ator Aury Porto (leia entrevistas abaixo). Eles estiveram na Folha em outubro do ano passado, participando do Ciclo de Leituras. Decidiram levar a idéia adiante e ensaiaram durante cerca de dois meses.
"Preso entre Ferragens" tem sua cena de origem numa dessas estradas rodoviárias do centro-oeste do país. Em 1989, Bonassi dirigia ao volante rumo a Ji-Paraná (RO), acompanhado do irmão, quando deparou com um acidente que lhe marcou. "Um cara de moto bateu num carro e seu corpo permaneceu sentado dentro do veículo. Era a visão de um monte de lata envolvendo um cadáver", descreve.
Transpor essa cena do asfalto para o palco é dos estranhamentos que ele gosta de provocar."Posso até admitir que as pessoas tenham dificuldade em ver na arte os fenômenos do cotidiano. Mas por que elas não se assustam com a TV? O Brasil tem um tesão pré-anal, uma atenção masturbatória pela violência", diz.
"Preso entre Ferragens" passa-se numa madrugada fria. Começa com um acidente numa estrada interestadual sugerida pela cenografia de Márcia Barros e iluminação de Guilherme Bonfanti. No carro destroçado (fiel ao estado em que foi comprado no desmanche), o motorista recupera-se do impacto e chama por sua mulher, aparentemente atirado no acostamento e morta.
No decurso até os primeiros fiapos de sol que antecedem a sirene do resgate, o homem enfrenta a situação-limite dialogando consigo e com a mulher oculta. Trata desde assuntos comezinhos, como quem vai dar comida ao seu cão, até rememorar os bons e maus momentos da relação.
"Ao contrário da tragédia clássica, quando o personagem tem uma concentração no que vai dizer, essa tragédia contemporânea está a reboque do texto como um todo, criando situações absurdas, oscilando momentos engraçados e profundamente cruéis", explica.
Para o dramaturgo, a eminência da morte suscita a queda de máscaras e cria instantes cruciais, definitivos. No roteiro do seu curta-metragem "Trabalho dos Homem", por exemplo, dois atiradores de elite da PM posicionam-se em cima de um prédio e conversam amenidades (carro, comida, mulher) enquanto aguardam para alvejar um sequestrador.
Ao contrário de "Um Céu de Estrelas" (91), que primeiro chegou ao cinema (Tata Amaral) para depois virar montagem teatral (Lígia Cortez) "Preso entre Ferragens" vai primeiro ao teatro Ruth Escobar e depois, não se sabe quando, chegará às telas com Bonassi debutando na direção e Jean-Claude Bernardet e Victor Navas como co-roteiristas.
Escrever para cinema ou teatro, tanto faz. Com o passar do tempo, diz, as linguagens perdem a importância. "A diferença básica é que no roteiro você tem de ser descritivo, tem de procurar a manifestação visual do fenômeno que te emociona", argumenta.
Na opinião do autor, roteiro bom é chato de ler, porque demasiado enxuto. Só um bom diretor consegue valorizar o subtexto. "Quando consigo criar uma boa fala, ganho o dia. Claro, torço para que atores e diretores dêem o melhor de si, mas já gozei antes", garante o titular da coluna "Da Rua" na Ilustrada.
No teatro, o subjetivismo domina. "O ator constrói o mundo de acordo com a história que ganha, um esqueleto para pôr carne, pele e cabelo", resume. Não deve ser por acaso que o seu apartamento, no bairro paulistano de Higienópolis, está repleto de crânios ou bonecos de esqueletos.


Peça: Preso entre Ferragens
Texto: Fernando Bonassi
Direção: Eliana Fonseca
Com: Aury Porto
Quando: estréia hoje, 21h; sex. e sáb., 21h; dom., 20h
Onde: teatro Ruth Escobar (r. dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 0/xx/289-2358)
Quanto: R$ 15 (sex. ) e R$ 20
Patrocínio: Banespa


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