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MARCELO COELHO
A presença fantasmagórica de Glauber Rocha
"Glauber , o Filme - Labirinto do Brasil", de Silvio
Tendler, é menos um documentário sobre o autor de "Terra em
Transe" do que um rito fúnebre
doméstico, um esforço meio desarrumado e comovente de lidar
com a ausência (e com a presença
fantasmagórica) de Glauber Rocha na cultura brasileira.
É verdade que o mínimo das informações necessárias a respeito
do diretor está ali: os anos de formação, os primeiros filmes, o sucesso em Cannes, o exílio, o fim da
vida. Mas a maior parte do filme
-pelo menos tive essa impressão- se concentra nas cenas do
velório e do enterro de Glauber,
em 1981, e quase a totalidade dos
depoimentos, sumária no que diz
respeito a explicar e a comentar
sua obra, evoca o lado mais desconcertante, constrangedor e caótico do artista.
As loucuradas de um grande gênio são, no fundo, bem pouco interessantes. Qualquer louco comum é capaz das mesmas coisas.
Com muita diplomacia, o que os
entrevistados sugerem no filme é
que, a partir de certo momento da
carreira de Glauber, o seu desequilíbrio pessoal foi mais forte do
que a capacidade criativa.
Vejo que também me deixei
contaminar pelo eufemismo que
impregna o documentário. No final da vida, Glauber Rocha devia
estar completamente louco. Mas
isso não é da minha conta.
Ocorre que "Glauber, o Filme"
parece estar organizado em torno
dessa constatação, ou melhor, organiza-se em torno da recusa a
essa constatação. O respeito devido a Glauber Rocha, sem dúvida,
impede que se enuncie abertamente o que todas as entrelinhas
do documentário repetem com
insistência.
Seria diferente se Silvio Tendler
privilegiasse o ápice da carreira
do diretor. Em determinado momento do documentário, alguém
se refere ao enorme impacto da
primeira exibição de "Deus e o
Diabo na Terra do Sol": Glauber
mostrava aos cineastas de sua geração qual o caminho a seguir.
Eles saíam da sessão de cinema
sabendo o que queriam fazer daí
em diante.
Testemunhos desse tipo, feitos
de homenagem enfática e verdadeira, são entretanto raros. Procuro entender a razão disso.
Talvez Silvio Tendler tenha feito um documentário sobre o declínio e a morte de Glauber Rocha
porque esse declínio e essa morte,
ocorridos há mais de 20 anos, já
prefigurassem as decepções, colapsos e desbaratamentos políticos do presente. É como se o enterro de Glauber -de tudo o que ele
tinha de notoriamente visionário
e messiânico- só hoje estivesse
acontecendo de fato.
O filme é um grande cortejo fúnebre. Uma de suas cenas mais
emocionantes é a do discurso que
Darcy Ribeiro pronuncia à beira
do túmulo de Glauber. Na sua
dicção minuciosa e controlada
-que contrastava com a alarmante exuberância de sua imaginação política-, Darcy lembra o
desespero de Glauber diante da
miséria nacional. Conta que
Glauber chorou uma manhã inteira em seu colo; aquelas lágrimas eram as que ele próprio,
Darcy, e todos os ali presentes,
eram incapazes de chorar. O orador se penitencia por não ter o
mesmo ímpeto, a mesma revolta,
a mesma intensidade de sentimentos.
Mas a contagem dos mortos
não pára. Darcy Ribeiro também
está morto, e tudo o que disse a
respeito de Glauber poderia ser
dito a seu respeito por algum outro orador. O cortejo seguirá
-enquanto houver oradores, é
claro. E não é de bom agouro verificar no documentário que, entre
as personalidades presentes no
enterro de Glauber, estava a figura de Eduardo Suplicy.
Creio, aliás, que é o maior freqüentador de enterros e velórios
de todo o Brasil. Não há grande
defunto que o senador Suplicy
não acompanhe, com um silêncio
eloqüente, inconfundível.
Do enterro de Glauber Rocha
ao enterro da CPI dos Bingos, o
percurso tem sido longo, e poucas
pessoas, na verdade, mantiveram
a coerência de Suplicy; seu rosto,
nas cenas do cemitério São João
Batista, já parecia possuir uma
nitidez de estatuária clássica. Ele
se mantém inabalável. Outros,
nem tanto.
No documentário, há depoimentos bastante significativos a
esse propósito. Alguns entrevistados observam que Glauber não
agüentaria o mundo atual, tão
globalizado e pragmático, feito de
concessões, de apatia etc. A conclusão, claro, é que Glauber faz
falta, que precisamos dele, mais
do que nunca.
Arrisco-me a dizer que está aí a
verdadeira chave para o filme de
Silvio Tendler. Certamente, quase
todos os que sobreviveram a
Glauber fizeram concessões que
ele condenaria. Ao mesmo tempo,
Glauber foi o primeiro a investir
numa delirante aproximação
com a direita, elogiando Golbery
e Figueiredo, numa tática que o
documentário elucida bem.
A morte -e a loucura- de
Glauber preservaram-no de
maiores condenações. Todos os
que "agüentaram" o mundo globalizado, todos os que flexibilizaram seus ideais, se sentem por sua
vez condenados pelo espectro radical do diretor. Mas ter convivido com Glauber, ter sido seu companheiro, funciona como um álibi. O fantasma que me condena é
ao mesmo tempo quem me dá um
salvo-conduto histórico e moral.
Se isso é verdade, nada mais lógico do que tentar o tempo inteiro
enterrar o morto e também manter viva a sua memória. "Glauber,
o Filme - Labirinto do Brasil" se
fixa nos relatos de decadência
pessoal e nas cenas de velório porque é desse modo, como um morto-vivo, que Glauber se mostra
necessário para muitos dos remanescentes de sua geração.
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