São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2004

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MARCELO COELHO

A presença fantasmagórica de Glauber Rocha

"Glauber , o Filme - Labirinto do Brasil", de Silvio Tendler, é menos um documentário sobre o autor de "Terra em Transe" do que um rito fúnebre doméstico, um esforço meio desarrumado e comovente de lidar com a ausência (e com a presença fantasmagórica) de Glauber Rocha na cultura brasileira.
É verdade que o mínimo das informações necessárias a respeito do diretor está ali: os anos de formação, os primeiros filmes, o sucesso em Cannes, o exílio, o fim da vida. Mas a maior parte do filme -pelo menos tive essa impressão- se concentra nas cenas do velório e do enterro de Glauber, em 1981, e quase a totalidade dos depoimentos, sumária no que diz respeito a explicar e a comentar sua obra, evoca o lado mais desconcertante, constrangedor e caótico do artista.
As loucuradas de um grande gênio são, no fundo, bem pouco interessantes. Qualquer louco comum é capaz das mesmas coisas. Com muita diplomacia, o que os entrevistados sugerem no filme é que, a partir de certo momento da carreira de Glauber, o seu desequilíbrio pessoal foi mais forte do que a capacidade criativa.
Vejo que também me deixei contaminar pelo eufemismo que impregna o documentário. No final da vida, Glauber Rocha devia estar completamente louco. Mas isso não é da minha conta.
Ocorre que "Glauber, o Filme" parece estar organizado em torno dessa constatação, ou melhor, organiza-se em torno da recusa a essa constatação. O respeito devido a Glauber Rocha, sem dúvida, impede que se enuncie abertamente o que todas as entrelinhas do documentário repetem com insistência.
Seria diferente se Silvio Tendler privilegiasse o ápice da carreira do diretor. Em determinado momento do documentário, alguém se refere ao enorme impacto da primeira exibição de "Deus e o Diabo na Terra do Sol": Glauber mostrava aos cineastas de sua geração qual o caminho a seguir. Eles saíam da sessão de cinema sabendo o que queriam fazer daí em diante.
Testemunhos desse tipo, feitos de homenagem enfática e verdadeira, são entretanto raros. Procuro entender a razão disso.
Talvez Silvio Tendler tenha feito um documentário sobre o declínio e a morte de Glauber Rocha porque esse declínio e essa morte, ocorridos há mais de 20 anos, já prefigurassem as decepções, colapsos e desbaratamentos políticos do presente. É como se o enterro de Glauber -de tudo o que ele tinha de notoriamente visionário e messiânico- só hoje estivesse acontecendo de fato.
O filme é um grande cortejo fúnebre. Uma de suas cenas mais emocionantes é a do discurso que Darcy Ribeiro pronuncia à beira do túmulo de Glauber. Na sua dicção minuciosa e controlada -que contrastava com a alarmante exuberância de sua imaginação política-, Darcy lembra o desespero de Glauber diante da miséria nacional. Conta que Glauber chorou uma manhã inteira em seu colo; aquelas lágrimas eram as que ele próprio, Darcy, e todos os ali presentes, eram incapazes de chorar. O orador se penitencia por não ter o mesmo ímpeto, a mesma revolta, a mesma intensidade de sentimentos.
Mas a contagem dos mortos não pára. Darcy Ribeiro também está morto, e tudo o que disse a respeito de Glauber poderia ser dito a seu respeito por algum outro orador. O cortejo seguirá -enquanto houver oradores, é claro. E não é de bom agouro verificar no documentário que, entre as personalidades presentes no enterro de Glauber, estava a figura de Eduardo Suplicy.
Creio, aliás, que é o maior freqüentador de enterros e velórios de todo o Brasil. Não há grande defunto que o senador Suplicy não acompanhe, com um silêncio eloqüente, inconfundível.
Do enterro de Glauber Rocha ao enterro da CPI dos Bingos, o percurso tem sido longo, e poucas pessoas, na verdade, mantiveram a coerência de Suplicy; seu rosto, nas cenas do cemitério São João Batista, já parecia possuir uma nitidez de estatuária clássica. Ele se mantém inabalável. Outros, nem tanto.
No documentário, há depoimentos bastante significativos a esse propósito. Alguns entrevistados observam que Glauber não agüentaria o mundo atual, tão globalizado e pragmático, feito de concessões, de apatia etc. A conclusão, claro, é que Glauber faz falta, que precisamos dele, mais do que nunca.
Arrisco-me a dizer que está aí a verdadeira chave para o filme de Silvio Tendler. Certamente, quase todos os que sobreviveram a Glauber fizeram concessões que ele condenaria. Ao mesmo tempo, Glauber foi o primeiro a investir numa delirante aproximação com a direita, elogiando Golbery e Figueiredo, numa tática que o documentário elucida bem.
A morte -e a loucura- de Glauber preservaram-no de maiores condenações. Todos os que "agüentaram" o mundo globalizado, todos os que flexibilizaram seus ideais, se sentem por sua vez condenados pelo espectro radical do diretor. Mas ter convivido com Glauber, ter sido seu companheiro, funciona como um álibi. O fantasma que me condena é ao mesmo tempo quem me dá um salvo-conduto histórico e moral.
Se isso é verdade, nada mais lógico do que tentar o tempo inteiro enterrar o morto e também manter viva a sua memória. "Glauber, o Filme - Labirinto do Brasil" se fixa nos relatos de decadência pessoal e nas cenas de velório porque é desse modo, como um morto-vivo, que Glauber se mostra necessário para muitos dos remanescentes de sua geração.


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