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ANÁLISE
Novela deve seu sucesso à perversa personagem Nazaré
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
O sucesso de "Senhora do Destino" é o sucesso da personagem
Nazaré. Tirem a maldita de cena e
sobrará pouca coisa -uma penca de dramas chatíssimos.
Nazaré é a fonte principal do
suspense, do terror, do nojo e da
fascinação. Ela é o melhor da novela porque é a parte do inconsciente em "Senhora do Destino".
O que é esta novela, o que são
todas as novelas da TV Globo? No
início, elas exibem de relance os
amplos horizontes da história e
da sociedade -em "Senhora do
Destino" foram os anos da ditadura militar; em "América" será a
imigração ilegal nos EUA.
Depois, elas vão se fechando
dentro das casas dos personagens
e se enovelando em pequenas intrigas sentimentais e financeiras.
Por fim, revelam seu objetivo
apolítico: novelas são sempre a
apologia da família, dos laços familiares, da procriação familiar
como destino. Por isso, "Senhora
do Destino", como todas as novelas, termina com uma penca de
casamentos, grávidas e bebês.
E o que é Nazaré? É aquela que
dissocia prazer e reprodução, que
contrapõe maternidade e sociedade. Ela deseja a prole sem querer o cônjuge e a vida doméstica.
Em vez do lar e da sublimação, ela
vai rodar a bolsinha na avenida.
Uma personagem assim, que
age movida pela força incontrolável do desejo e desafia a ordem da
família, só poderia ser um distúrbio, para não ofender o público.
Nazaré será, portanto, um misto
de puta, de criminosa e de louca.
Tudo isso, além de ser a perversa por excelência, a obsessiva das
perucas, dos disfarces e travestimentos, a narcisista camp -ou
verdadeira metáfora da bicha louca para o consumo doméstico.
Metamorfoses e subentendidos
que Renata Sorrah compreendeu
brilhantemente, com seu estilo
entre o expressionismo, o underground e o desenho animado.
No fundo, Nazaré é uma provocação que Aguinaldo Silva, ex-militante homossexual, lançou aos
espectadores a cada noite, sub-repticiamente, sob a máscara ficcional da vilania e da ironia.
Provocação que começa no nome (e sua referência religiosa) e
segue no modo como a libertinagem foi exibida no horário nobre
-mesmo quando ela se metia na
cama com dois amantes juntos.
Quanto mais o desejo enlouquecia Nazaré, mais os espectadores se entusiasmavam com a
personagem. No dia-a-dia dos capítulos, Nazaré era para eles a miragem dos prazeres e dos perigos
que a vida reserva a quem escapa
da redoma familiar.
"Senhora do Destino" foi também a apoteose nas novelas do
nacional-populismo da TV Globo
-esta misteriosa propaganda
dos valores "positivos" brasileiros
que a emissora difunde cada vez
mais em seus programas.
"Pela primeira vez, senti algo
que não tinha sentido antes: o orgulho de ser brasileiro. Vamos
brindar ao povo brasileiro!", exclamou Marília Gabriela, entre
outras manifestações ufanistas no
capítulo do último sábado.
Quanto mais populistas as novelas, mais mexicanizadas elas ficam no plano da encenação. "Senhora do Destino" rompeu com a
linha evolutiva da novela brasileira "realista", "esclarecida" e
"cool" iniciada por "Beto Rockfeller" (1968). Do roteiro à direção,
ela cedeu sem pudores ao dramalhão, à caricatura, ao trash. É uma
das novelas mais trash da Globo,
refletindo à sua maneira esta época de pagodização das elites e de
severinização da política.
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