São Paulo, quinta-feira, 10 de março de 2005

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ANÁLISE

Novela deve seu sucesso à perversa personagem Nazaré

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

O sucesso de "Senhora do Destino" é o sucesso da personagem Nazaré. Tirem a maldita de cena e sobrará pouca coisa -uma penca de dramas chatíssimos.
Nazaré é a fonte principal do suspense, do terror, do nojo e da fascinação. Ela é o melhor da novela porque é a parte do inconsciente em "Senhora do Destino".
O que é esta novela, o que são todas as novelas da TV Globo? No início, elas exibem de relance os amplos horizontes da história e da sociedade -em "Senhora do Destino" foram os anos da ditadura militar; em "América" será a imigração ilegal nos EUA.
Depois, elas vão se fechando dentro das casas dos personagens e se enovelando em pequenas intrigas sentimentais e financeiras.
Por fim, revelam seu objetivo apolítico: novelas são sempre a apologia da família, dos laços familiares, da procriação familiar como destino. Por isso, "Senhora do Destino", como todas as novelas, termina com uma penca de casamentos, grávidas e bebês.
E o que é Nazaré? É aquela que dissocia prazer e reprodução, que contrapõe maternidade e sociedade. Ela deseja a prole sem querer o cônjuge e a vida doméstica. Em vez do lar e da sublimação, ela vai rodar a bolsinha na avenida.
Uma personagem assim, que age movida pela força incontrolável do desejo e desafia a ordem da família, só poderia ser um distúrbio, para não ofender o público. Nazaré será, portanto, um misto de puta, de criminosa e de louca.
Tudo isso, além de ser a perversa por excelência, a obsessiva das perucas, dos disfarces e travestimentos, a narcisista camp -ou verdadeira metáfora da bicha louca para o consumo doméstico. Metamorfoses e subentendidos que Renata Sorrah compreendeu brilhantemente, com seu estilo entre o expressionismo, o underground e o desenho animado.
No fundo, Nazaré é uma provocação que Aguinaldo Silva, ex-militante homossexual, lançou aos espectadores a cada noite, sub-repticiamente, sob a máscara ficcional da vilania e da ironia.
Provocação que começa no nome (e sua referência religiosa) e segue no modo como a libertinagem foi exibida no horário nobre -mesmo quando ela se metia na cama com dois amantes juntos.
Quanto mais o desejo enlouquecia Nazaré, mais os espectadores se entusiasmavam com a personagem. No dia-a-dia dos capítulos, Nazaré era para eles a miragem dos prazeres e dos perigos que a vida reserva a quem escapa da redoma familiar.
"Senhora do Destino" foi também a apoteose nas novelas do nacional-populismo da TV Globo -esta misteriosa propaganda dos valores "positivos" brasileiros que a emissora difunde cada vez mais em seus programas.
"Pela primeira vez, senti algo que não tinha sentido antes: o orgulho de ser brasileiro. Vamos brindar ao povo brasileiro!", exclamou Marília Gabriela, entre outras manifestações ufanistas no capítulo do último sábado.
Quanto mais populistas as novelas, mais mexicanizadas elas ficam no plano da encenação. "Senhora do Destino" rompeu com a linha evolutiva da novela brasileira "realista", "esclarecida" e "cool" iniciada por "Beto Rockfeller" (1968). Do roteiro à direção, ela cedeu sem pudores ao dramalhão, à caricatura, ao trash. É uma das novelas mais trash da Globo, refletindo à sua maneira esta época de pagodização das elites e de severinização da política.


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