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DISCOS LANÇAMENTOS
Gould reúne Bach, Scarlatti e C.P.E. Bach
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
É difícil acreditar que essas gravações tenham ficado tanto tempo
guardadas em arquivo. Entre as
raridades incluídas no CD estão
várias peças de J. S. Bach
(1685-1750): o "Concerto em Ré
Menor Baseado em Marcello",
duas fugas sobre temas de "Albinoni", três pequenas fantasias e a
"Fantasia Cromática BWV 903",
além da "Aria Variatta alla Maniera Italiana".
Há também três sonatas de Scarlatti (1685-1757) e uma de Carl
Philip Emanuel Bach (1714-88),
previamente lançadas, mas hoje
quase impossíveis de achar. Tudo
somado faz deste CD um apêndice
e tanto para a "Glenn Gould Edition", uma coleção extraordinária
de gravações (nem sempre extraordinárias) de um dos maiores
pianistas do século.
A arte de Gould (1932-82) já foi
comparada, com justiça, à dos
maiores tradutores. Toda a transação complexa que se dá quando
um romance ou poema muda de
idioma, reinventado não só em
outra língua, mas em outra voz e
outra cultura, serve de analogia
para o trabalho de recriação da
música nas mãos de um pianista
como ele. Qualquer peça interpretada por Gould assume uma nova
identidade, que deve tanto ao
compositor quanto ao pianista.
Ele é um daqueles músicos que a
gente reconhece ao primeiro toque. Não é só uma questão de timbre (fácil de identificar, porque ele
usava sempre o mesmo piano
meio fanhoso e à beira do desafinado), mas de articulação, fraseado, pulso. Nem tudo o que ele toca
vira ouro; mas sempre vira Gould.
Transbordando idéias, para ele
tocar era ao mesmo tempo uma
ocasião de transcendência e de crítica. Foi o artista-crítico por excelência, o único músico desse quilate, aliás, a interpretar peças de
que confessadamente não gostava.
Fazia isso do mesmo modo como
um crítico pode escrever uma análise brilhante de um autor por
quem não tem maior apreço. Só
que o fazia tocando.
É o caso da "Fantasia Cromática" de Bach, que ele chamava de
"monstruosidade", mas que, como agora se escuta, interpretava
com enorme vigor, mesmo se exagerando na força das linhas, soando completamente nuas, sem ilusão de contraponto, que é decerto
o que não lhe satisfazia aqui.
Ou do "Concerto Italiano", registrado numa versão decepcionante de 1959, e que ele contava
regravar para um projetado "Álbum Italiano". Foi provavelmente
para esse mesmo projeto que ele
gravou as duas fugas sobre temas
de Albinoni.
"A idéia a qual a fuga deve mais
claramente obedecer é a de um
movimento incessante. A aliança
entre o movimento e a densidade
constantes determina a forma da
fuga. Pois é só dentro desse movimento e dessa densidade invariáveis, que cada frase, cada sentença
musical vem estabelecer seu próprio problema, seu próprio motivo particular de angústia."
Extraídas de um ensaio de Gould
sobre a fuga ("So You Want to
Write a Fugue?", 1964), essas palavras dão bem a dimensão de "seu
próprio problema" (um senso
único de movimento, que vai revelando o tema em múltiplas figuras, numa ordem "nomádica").
Que o maior visionário moderno
do contraponto nem sequer mencione o problema da sobreposição
de vozes no teclado só indica o
quanto isso lhe parecia natural e,
por outro lado, o quanto de idiossincrasia temperava o seu cravo. O
resultado é exuberante.
A mesma vitalidade de movimento vem a propósito no "Concerto em Ré Menor", na verdade
um arranjo de Bach do "Concerto
para Oboé de Alessandro Marcello" (1669-1747). Um dos greatest
hits do barroco veneziano, o concerto ressurge transfigurado nesse
piano que é virtualmente uma escola de interpretação da música
antiga: uma escola de um homem
só. Menos sedutor que o original,
o "Adágio" do concerto, sem as
doçuras do oboé, soa como a música por trás da música, o concerto
do concerto ("a poesia da poesia"), como dizia Novalis, da tradução.
Uma geração depois de Marcello
e J. S. Bach, C. P. E. Bach já vivia
em outro mundo, musicalmente
pré-clássico e pré-romântico de
uma vez só. A sonata escolhida por
Gould ("Wq. 49/1") faz parte do
repertório menos extravagante,
mas nem por isso menos expressivo, desse compositor capaz de extravagâncias geniais. Incidentalmente, quanto mais se descobre a
música de C. P. E. Bach, mais se
gosta dela.
É uma espécie de Couperin do
fim do século 18: sofisticado, cosmopolita, nostálgico, temperamental, com a consciência permanente do teatro do mundo. Pena
que Gould não tenha concretizado
seu desejo de gravar um disco só
com peças dele. Vai ficar para
sempre como uma das frustrações
musicais da nossa época.
O mesmo se pode dizer do esforço interrompido de gravar 12 sonatas de Scarlatti ("um dos prazeres mais garantidos" da história da
música, na opinião de Gould). Sua
interpretação é quase o oposto das
façanhas contrapontísticas em
Bach. A felicidade de tocar e a felicidade pura e simples se confundem nessas peças com uma fluência fácil que é tanto dos dedos
quanto da imaginação.
"Glenn Gould: Idiossincrático"
poderia ser um verbete do "Dicionário de Idéias Feitas", de Flaubert. O adjetivo continua inevitável; não está errado, mas é insuficiente e carrega uma ponta mesquinha de censura. É bem verdade
que Gould o pianista-crítico, o
pianista-tradutor às vezes parece
uma caricatura de algumas correntes centrais da cultura nos anos
70 e 80. Mas a evidência de gravações como essas é o bastante para
que se defina sua estatura. Ele é
um dos grandes artistas do século.
Oxalá o baú de inéditos não tenha
fundo.
Disco: J. S. Bach: Fugas sobre temas de
Albinoni e outras obras; C.P.E. Bach: Sonata
Wq. 49/1; D. Scarlatti: Três Sonatas (K. 430,
K. 9, K. 13)
Pianista: Glenn Gould
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 18, em média
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