São Paulo, terça, 10 de março de 1998

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DISCOS LANÇAMENTOS
Gould reúne Bach, Scarlatti e C.P.E. Bach

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

É difícil acreditar que essas gravações tenham ficado tanto tempo guardadas em arquivo. Entre as raridades incluídas no CD estão várias peças de J. S. Bach (1685-1750): o "Concerto em Ré Menor Baseado em Marcello", duas fugas sobre temas de "Albinoni", três pequenas fantasias e a "Fantasia Cromática BWV 903", além da "Aria Variatta alla Maniera Italiana".
Há também três sonatas de Scarlatti (1685-1757) e uma de Carl Philip Emanuel Bach (1714-88), previamente lançadas, mas hoje quase impossíveis de achar. Tudo somado faz deste CD um apêndice e tanto para a "Glenn Gould Edition", uma coleção extraordinária de gravações (nem sempre extraordinárias) de um dos maiores pianistas do século.
A arte de Gould (1932-82) já foi comparada, com justiça, à dos maiores tradutores. Toda a transação complexa que se dá quando um romance ou poema muda de idioma, reinventado não só em outra língua, mas em outra voz e outra cultura, serve de analogia para o trabalho de recriação da música nas mãos de um pianista como ele. Qualquer peça interpretada por Gould assume uma nova identidade, que deve tanto ao compositor quanto ao pianista.
Ele é um daqueles músicos que a gente reconhece ao primeiro toque. Não é só uma questão de timbre (fácil de identificar, porque ele usava sempre o mesmo piano meio fanhoso e à beira do desafinado), mas de articulação, fraseado, pulso. Nem tudo o que ele toca vira ouro; mas sempre vira Gould.
Transbordando idéias, para ele tocar era ao mesmo tempo uma ocasião de transcendência e de crítica. Foi o artista-crítico por excelência, o único músico desse quilate, aliás, a interpretar peças de que confessadamente não gostava. Fazia isso do mesmo modo como um crítico pode escrever uma análise brilhante de um autor por quem não tem maior apreço. Só que o fazia tocando.
É o caso da "Fantasia Cromática" de Bach, que ele chamava de "monstruosidade", mas que, como agora se escuta, interpretava com enorme vigor, mesmo se exagerando na força das linhas, soando completamente nuas, sem ilusão de contraponto, que é decerto o que não lhe satisfazia aqui.
Ou do "Concerto Italiano", registrado numa versão decepcionante de 1959, e que ele contava regravar para um projetado "Álbum Italiano". Foi provavelmente para esse mesmo projeto que ele gravou as duas fugas sobre temas de Albinoni.
"A idéia a qual a fuga deve mais claramente obedecer é a de um movimento incessante. A aliança entre o movimento e a densidade constantes determina a forma da fuga. Pois é só dentro desse movimento e dessa densidade invariáveis, que cada frase, cada sentença musical vem estabelecer seu próprio problema, seu próprio motivo particular de angústia."
Extraídas de um ensaio de Gould sobre a fuga ("So You Want to Write a Fugue?", 1964), essas palavras dão bem a dimensão de "seu próprio problema" (um senso único de movimento, que vai revelando o tema em múltiplas figuras, numa ordem "nomádica"). Que o maior visionário moderno do contraponto nem sequer mencione o problema da sobreposição de vozes no teclado só indica o quanto isso lhe parecia natural e, por outro lado, o quanto de idiossincrasia temperava o seu cravo. O resultado é exuberante.
A mesma vitalidade de movimento vem a propósito no "Concerto em Ré Menor", na verdade um arranjo de Bach do "Concerto para Oboé de Alessandro Marcello" (1669-1747). Um dos greatest hits do barroco veneziano, o concerto ressurge transfigurado nesse piano que é virtualmente uma escola de interpretação da música antiga: uma escola de um homem só. Menos sedutor que o original, o "Adágio" do concerto, sem as doçuras do oboé, soa como a música por trás da música, o concerto do concerto ("a poesia da poesia"), como dizia Novalis, da tradução.
Uma geração depois de Marcello e J. S. Bach, C. P. E. Bach já vivia em outro mundo, musicalmente pré-clássico e pré-romântico de uma vez só. A sonata escolhida por Gould ("Wq. 49/1") faz parte do repertório menos extravagante, mas nem por isso menos expressivo, desse compositor capaz de extravagâncias geniais. Incidentalmente, quanto mais se descobre a música de C. P. E. Bach, mais se gosta dela.
É uma espécie de Couperin do fim do século 18: sofisticado, cosmopolita, nostálgico, temperamental, com a consciência permanente do teatro do mundo. Pena que Gould não tenha concretizado seu desejo de gravar um disco só com peças dele. Vai ficar para sempre como uma das frustrações musicais da nossa época.
O mesmo se pode dizer do esforço interrompido de gravar 12 sonatas de Scarlatti ("um dos prazeres mais garantidos" da história da música, na opinião de Gould). Sua interpretação é quase o oposto das façanhas contrapontísticas em Bach. A felicidade de tocar e a felicidade pura e simples se confundem nessas peças com uma fluência fácil que é tanto dos dedos quanto da imaginação.
"Glenn Gould: Idiossincrático" poderia ser um verbete do "Dicionário de Idéias Feitas", de Flaubert. O adjetivo continua inevitável; não está errado, mas é insuficiente e carrega uma ponta mesquinha de censura. É bem verdade que Gould o pianista-crítico, o pianista-tradutor às vezes parece uma caricatura de algumas correntes centrais da cultura nos anos 70 e 80. Mas a evidência de gravações como essas é o bastante para que se defina sua estatura. Ele é um dos grandes artistas do século. Oxalá o baú de inéditos não tenha fundo.

Disco: J. S. Bach: Fugas sobre temas de Albinoni e outras obras; C.P.E. Bach: Sonata Wq. 49/1; D. Scarlatti: Três Sonatas (K. 430, K. 9, K. 13)
Pianista: Glenn Gould Lançamento: Sony Quanto: R$ 18, em média


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