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FORMA&ESPAÇO
Bye bye, São Paulo, Brasil
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
No torpor do ônibus, vou me
despedindo da cidade. Já é
noite escura quando deixamos o
Memorial da América Latina em
direção ao embarque no navio-platéia da peça "BR-3", do Teatro
da Vertigem, que acontece no leito do rio Tietê. Somos, a partir de
então, transportados para uma
experiência radical e em muitos
sentidos sem volta.
A peça narra uma viagem para
dentro do Brasil profundo, num
arco temporal que vai da construção de Brasília até hoje. E se desenvolve num fluxo de migrações
que começa na capital em construção, passa pela periferia de São
Paulo e acaba no Acre, na beira
do "rio onde o Brasil termina",
destino final da tragédia.
Dentro do barco transformado
em igreja evangélica, vemos a cidade de um ponto de vista rebaixado: nada de skyline, apenas
viadutos em abismo no céu, luzes
de automóveis que passam incessantemente ao largo, os taludes
recém-inaugurados nas margens,
agora muito próximos, e os blocos
carcomidos das fundações de pilares. O rio, turvo e alheio, tem
uma escala surpreendentemente
doméstica, que permite que as cenas aconteçam quase que simultaneamente nas duas margens.
Ele, que sempre foi o "buraco
negro" de São Paulo, é de repente
a superfície que nos escora. Dentro do barco, sinto-me imediatamente um habitante da "terceira
margem" e lembro que o Tietê é
um rio sui generis, que se afasta
do mar correndo para o interior,
para a introspecção. Nesse passo,
representa-se a construção de
Brasília junto às enormes barragens do "cebolão", anunciando
em "off" intenções grandiosas
que, nesse cenário, parecem sinistras, como a "incorporação do
bucólico ao monumental" (palavras de Lucio Costa ao descrever o
Plano Piloto de Brasília).
Navegando contra o rio, mas
num fluxo contínuo, vou me sentindo apartado do tempo e do espaço, num embotamento que é o
espelho inverso de estar numa roda-gigante: sem sobressaltos, mas
numa constância vertiginosa. Por
isso a "viagem" realmente se
cumpre, atravessando as ruínas
do "novo" Brasil (favelas, narcotráfico, agrobusiness, proliferação
de religiões, índios depauperados), sobre o terreno movente e
pantanoso que o alegoriza e que,
no entanto, é tão flagrantemente
real, com seus despojos flutuantes. A tragédia que se encena é "filha" de Brasília, já que descreve o
destino errante de alguém cujo
pai desapareceu na sua construção e que está fadado a fugir de si
mesmo e do seu destino, numa
trama que não deixa de ser a busca de um pai ausente.
No caminho, à medida que nos
afastamos do Brasil conhecido,
vão aparecendo imagens pontilhadas de um país a um tempo
fantasmagórico e atual, no culto
urbano dos evangélicos, nos óvnis
egípcios do "Vale do Amanhecer", no auasca da floresta, na Iemanjá diante de uma cascata de
água podre ou na "virgem de Copacabana" sentada num banquinho de praça suspenso sobre uma
galeria de esgoto. O percurso é,
portanto, um "mergulho" nas
águas imundas do rio, que ocorre
inevitavelmente, por mais que o
ritmo das cenas não esteja sempre
eletrizante ou que o drama psicológico da narrativa fique às vezes
rebaixado diante da dimensão espetacular do cenário.
Aliás, querendo ouvir o canto
das sereias do Tietê, me peguei
pensando se a vocação narrativa
daquele espaço não seria ainda
mais épica do que trágica. É uma
hipótese...
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