São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Bye bye, São Paulo, Brasil

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

No torpor do ônibus, vou me despedindo da cidade. Já é noite escura quando deixamos o Memorial da América Latina em direção ao embarque no navio-platéia da peça "BR-3", do Teatro da Vertigem, que acontece no leito do rio Tietê. Somos, a partir de então, transportados para uma experiência radical e em muitos sentidos sem volta.
A peça narra uma viagem para dentro do Brasil profundo, num arco temporal que vai da construção de Brasília até hoje. E se desenvolve num fluxo de migrações que começa na capital em construção, passa pela periferia de São Paulo e acaba no Acre, na beira do "rio onde o Brasil termina", destino final da tragédia.
Dentro do barco transformado em igreja evangélica, vemos a cidade de um ponto de vista rebaixado: nada de skyline, apenas viadutos em abismo no céu, luzes de automóveis que passam incessantemente ao largo, os taludes recém-inaugurados nas margens, agora muito próximos, e os blocos carcomidos das fundações de pilares. O rio, turvo e alheio, tem uma escala surpreendentemente doméstica, que permite que as cenas aconteçam quase que simultaneamente nas duas margens.
Ele, que sempre foi o "buraco negro" de São Paulo, é de repente a superfície que nos escora. Dentro do barco, sinto-me imediatamente um habitante da "terceira margem" e lembro que o Tietê é um rio sui generis, que se afasta do mar correndo para o interior, para a introspecção. Nesse passo, representa-se a construção de Brasília junto às enormes barragens do "cebolão", anunciando em "off" intenções grandiosas que, nesse cenário, parecem sinistras, como a "incorporação do bucólico ao monumental" (palavras de Lucio Costa ao descrever o Plano Piloto de Brasília).
Navegando contra o rio, mas num fluxo contínuo, vou me sentindo apartado do tempo e do espaço, num embotamento que é o espelho inverso de estar numa roda-gigante: sem sobressaltos, mas numa constância vertiginosa. Por isso a "viagem" realmente se cumpre, atravessando as ruínas do "novo" Brasil (favelas, narcotráfico, agrobusiness, proliferação de religiões, índios depauperados), sobre o terreno movente e pantanoso que o alegoriza e que, no entanto, é tão flagrantemente real, com seus despojos flutuantes. A tragédia que se encena é "filha" de Brasília, já que descreve o destino errante de alguém cujo pai desapareceu na sua construção e que está fadado a fugir de si mesmo e do seu destino, numa trama que não deixa de ser a busca de um pai ausente.
No caminho, à medida que nos afastamos do Brasil conhecido, vão aparecendo imagens pontilhadas de um país a um tempo fantasmagórico e atual, no culto urbano dos evangélicos, nos óvnis egípcios do "Vale do Amanhecer", no auasca da floresta, na Iemanjá diante de uma cascata de água podre ou na "virgem de Copacabana" sentada num banquinho de praça suspenso sobre uma galeria de esgoto. O percurso é, portanto, um "mergulho" nas águas imundas do rio, que ocorre inevitavelmente, por mais que o ritmo das cenas não esteja sempre eletrizante ou que o drama psicológico da narrativa fique às vezes rebaixado diante da dimensão espetacular do cenário.
Aliás, querendo ouvir o canto das sereias do Tietê, me peguei pensando se a vocação narrativa daquele espaço não seria ainda mais épica do que trágica. É uma hipótese...


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