São Paulo, sábado, 10 de abril de 2010

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Luz sobre Caravaggio

Novos estudos lançados no exterior e reedição de clássico no Brasil desfazem mitos em torno da obra do mestre barroco


"Judite e Holoferne", de Caravaggio

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

No balneário italiano de Porto Ercole, historiadores estão afundados nesta semana até a cintura em ossadas e caveiras do século 17 à procura dos restos mortais do pintor Michelangelo Merisi, o Caravaggio.
Enquanto isso, filas se estendem por quarteirões em Roma desde fevereiro para ver os quadros deixados pelo artista que virou sinônimo do barroco, tema de uma exposição que já arrastou 240 mil ao Quirinale.
Morto há exatos 400 anos, não se sabe se de febre repentina ou se assassinado por algum desafeto, Caravaggio não deixou vestígio, cartas, diários ou anotações, a não ser a obra revolucionária que foi capaz de construir em 38 anos de vida.
Relegado à sombra dos mestres renascentistas, Caravaggio voltou ao centro da história da arte italiana só no século 20, mas sofreu com leituras truncadas de sua obra até agora. Novos estudos que acabam de sair no exterior, um catálogo completo de suas pinturas lançado pela editora Taschen e um livro da historiadora alemã Sybille Ebert-Schifferer tentam desconstruir os mitos em torno da figura polêmica do artista que inventou o chiaroscuro e injetou doses hipertrofiadas de drama na pintura ocidental.
Na esteira dessa reabilitação histórica, sai no segundo semestre, pela Cosac Naify, a primeira edição brasileira do clássico do historiador Roberto Longhi sobre o pintor. Em "Caravaggio", escrito na década de 1950, o italiano conseguiu renovar o interesse pelo artista, sem pesar a mão nos detalhes sórdidos de sua vida privada.
É fato que Caravaggio matou um homem numa briga de rua. Também é fato que usou mendigos, prostitutas e andarilhos como modelos para suas representações de narrativas bíblicas. Mas a ideia que vigorou entre alguns historiadores de que ele tentou ser um agente provocador, crítico à Igreja Católica e talhado para a vida fora da lei, já não se sustenta diante de uma nova análise de suas obras.

Leituras distorcidas
"Uma distorção é pensar que ele era esse boêmio de levada estranha, que deixou sua vida influenciar o modo como pintava suas peças religiosas", afirma Sebastian Schütze, autor de "Caravaggio". "Ele estava muito envolvido na cultura da Contrarreforma, pintava para os cardeais mais importantes."
Tanto que seu uso de gente comum vestindo roupas da época para montar suas alegorias bíblicas fazia parte da operação do Vaticano de levar a vida eclesiástica ao cotidiano de um povo que perdia a fé.
"Não era para fazer escândalo que usava esses modelos", diz Ebert-Schifferer. "Estava atendendo pedidos do clero."
Também perde força a ideia de um Caravaggio imediatista, que registrava na tela os traços de seus personagens sem muita elaboração posterior. Ao mesmo tempo em que se tornou célebre por usar modelos vivos e menosprezar estudos, Caravaggio não podia ter arquitetado cenas tão complexas sem maior planejamento prévio.
Sob nova luz, fica claro que o artista tentou travar um diálogo com Michelangelo e Leonardo Da Vinci, opondo às composições clássicas suas cenas de caráter teatral transbordante.
"Ele estudava os modelos, depois transformava suas formas, tinha uma tipologia de faces", diz Ebert-Schifferer. "Na composição, havia sempre uma invenção, por exemplo, o sangue que esguicha do pescoço de Holoferne não cairia daquele jeito, ele não poderia ter observado um decapitado no ateliê."
Mas enquanto novos estudos tentam desligar sua vida de excessos à leitura de seus quadros, um detalhe ainda destoa do conjunto. Quando retrata Davi segurando pelos cabelos a cabeça de Golias derrotado, faz do rosto do gigante um autorretrato. Em vez de se colocar na pele de um herói, Caravaggio prefere a tragédia, sinal de que viveu uma vida sob ameaça.


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