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ANÁLISE
Retorno atesta importância de artista
CRISTIAN BORGES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como podemos apreender a
obra de um artista da envergadura de Michelangelo Merisi da
Caravaggio (1571-1610)? Uma
sugestão assaz agradável seria
visitarmos algumas das quantas igrejas e galerias de Roma,
normalmente pequenas e nem
um pouco glamourosas, no interior das quais encontram-se
algumas das obras-primas desse grande pintor morto precocemente, aos 38 anos, após uma
brevíssima carreira de pouco
mais de uma década.
Trata-se de quadros que, embora dispostos de maneira humilde e discreta, muitas vezes
próximos de outros menos importantes, nada possuem de
humilde e discreto. Eles representam o que há de mais sofisticado, na pintura, em termos de
um naturalismo exacerbado
das cenas, que não dispensa
nem a contundência dos gestos,
por um lado, nem a forte iluminação teatral, por outro.
Os gestos e as poses, quase fotográficas, tornavam qualquer
cena religiosa respeitável tão
trivial e palpável quanto uma
cena cotidiana banal -algo no
mínimo audacioso, sobretudo
numa época em que ainda imperavam a idealização da beleza e a busca de composições
harmoniosas, clássicas.
Quanto aos personagens que
gesticulam, eles refletiam, ao
mesmo tempo, a nobreza dos
temas e a pobreza algo bruta
daqueles que lhe serviam de
modelos: membros da "escória" da sociedade italiana, como
prostitutas, bandidos, meninos
de rua, velhos e mendigos.
A iluminação teatral, por sua
vez, fazia-se notar através do
fundo do quadro, em geral vazio e mergulhado na penumbra, que se contrapunha às figuras em primeiro plano, banhadas por uma luz altamente
dramática que iluminava um
ponto para melhor ocultar outro. Esse violento contraste
meticulosamente "esculpido"
na imagem acabava por revelar
a existência de uma fonte externa de luz e, consequentemente, explicitava a feitura do
quadro, seu caráter de artifício,
desmascarando assim o próprio dispositivo pictórico.
Não à toa, o cinema, seguido
de outras manifestações audiovisuais, beberia muito em suas
águas. Por isso, uma outra sugestão para se apreender a obra
de Caravaggio, não menos agradável que a primeira, embora
menos impactante, seria apreciarmos as reconstituições, ou
melhor, as recriações contemporâneas de alguns quadros.
Por exemplo, na releitura
brechtiana e crítica proposta
por Jean-Luc Godard no seu
filme "Passion" (1982), na bela
e minimalista cinebiografia
realizada por Derek Jarman em
1986, "Caravaggio" (Urso de
Prata no Festival de Berlim), no
pastiche do popular videoclipe
da banda REM, "Losing My Religion", ou ainda em alguns dos
últimos trabalhos do videoartista Bill Viola.
Assim como o francês Georges de La Tour (1593-1652), outro mestre barroco da técnica
do claro-escuro que se destacaria pela utilização de velas em
seus quadros, Caravaggio cairia
no esquecimento por séculos,
depois de sua morte, sendo redescoberto somente no início
do século 20, quando alguns
historiadores o reconheceriam
como um dos pais da pintura
moderna. O presente retorno
à sua obra apenas atesta sua
importância.
CRISTIAN BORGES é professor da ECA-USP e
realizou tese, na França, sobre a construção fílmica a partir das relações entre cinema e pintura
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