São Paulo, sábado, 10 de abril de 2010

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ANÁLISE

Retorno atesta importância de artista

CRISTIAN BORGES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como podemos apreender a obra de um artista da envergadura de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610)? Uma sugestão assaz agradável seria visitarmos algumas das quantas igrejas e galerias de Roma, normalmente pequenas e nem um pouco glamourosas, no interior das quais encontram-se algumas das obras-primas desse grande pintor morto precocemente, aos 38 anos, após uma brevíssima carreira de pouco mais de uma década.
Trata-se de quadros que, embora dispostos de maneira humilde e discreta, muitas vezes próximos de outros menos importantes, nada possuem de humilde e discreto. Eles representam o que há de mais sofisticado, na pintura, em termos de um naturalismo exacerbado das cenas, que não dispensa nem a contundência dos gestos, por um lado, nem a forte iluminação teatral, por outro.
Os gestos e as poses, quase fotográficas, tornavam qualquer cena religiosa respeitável tão trivial e palpável quanto uma cena cotidiana banal -algo no mínimo audacioso, sobretudo numa época em que ainda imperavam a idealização da beleza e a busca de composições harmoniosas, clássicas.
Quanto aos personagens que gesticulam, eles refletiam, ao mesmo tempo, a nobreza dos temas e a pobreza algo bruta daqueles que lhe serviam de modelos: membros da "escória" da sociedade italiana, como prostitutas, bandidos, meninos de rua, velhos e mendigos.
A iluminação teatral, por sua vez, fazia-se notar através do fundo do quadro, em geral vazio e mergulhado na penumbra, que se contrapunha às figuras em primeiro plano, banhadas por uma luz altamente dramática que iluminava um ponto para melhor ocultar outro. Esse violento contraste meticulosamente "esculpido" na imagem acabava por revelar a existência de uma fonte externa de luz e, consequentemente, explicitava a feitura do quadro, seu caráter de artifício, desmascarando assim o próprio dispositivo pictórico.
Não à toa, o cinema, seguido de outras manifestações audiovisuais, beberia muito em suas águas. Por isso, uma outra sugestão para se apreender a obra de Caravaggio, não menos agradável que a primeira, embora menos impactante, seria apreciarmos as reconstituições, ou melhor, as recriações contemporâneas de alguns quadros.
Por exemplo, na releitura brechtiana e crítica proposta por Jean-Luc Godard no seu filme "Passion" (1982), na bela e minimalista cinebiografia realizada por Derek Jarman em 1986, "Caravaggio" (Urso de Prata no Festival de Berlim), no pastiche do popular videoclipe da banda REM, "Losing My Religion", ou ainda em alguns dos últimos trabalhos do videoartista Bill Viola.
Assim como o francês Georges de La Tour (1593-1652), outro mestre barroco da técnica do claro-escuro que se destacaria pela utilização de velas em seus quadros, Caravaggio cairia no esquecimento por séculos, depois de sua morte, sendo redescoberto somente no início do século 20, quando alguns historiadores o reconheceriam como um dos pais da pintura moderna. O presente retorno à sua obra apenas atesta sua importância.

CRISTIAN BORGES é professor da ECA-USP e realizou tese, na França, sobre a construção fílmica a partir das relações entre cinema e pintura



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