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LIVROS
Crítica/ "Freud Obras Completas - Volumes 10, 12 e 14"
Edição preserva qualidade de Freud
Tradução de Paulo César de Souza, feita diretamente do alemão, revela o talento literário do criador da psicanálise
LUÍS CARLOS MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA
A obra de Freud caiu em
domínio público em janeiro, ou seja, pode agora ser traduzida e publicada por
qualquer editora interessada.
Paulo César de Souza, premiado duas vezes por suas traduções de Brecht e de grande parte da obra de Nietzsche, alia a
competência do germanista reconhecido a um grande sonho
pessoal: o desafio de traduzir a
obra de Freud.
Nesta feliz conjuntura, a
"nossa clara língua majestosa"
(expressão de Fernando Pessoa
citada pelo tradutor em seu
prefácio), depois de tanto penar com traduções, em geral
muito ruins, feitas do inglês, do
francês e do espanhol, começa
agora a acolher nela a escrita
freudiana traduzida diretamente do alemão.
Nos últimos anos, alguns volumes já haviam sido publicados pela editora Imago, detentora dos direitos autorais para o
português, traduzidos por uma
equipe sob a direção de Luiz Alberto Hanns.
Aqui, no entanto, vou me ater
a alguns comentários sobre as
"Obras Completas", em vinte
volumes, traduzida por Paulo
César, dos quais três acabam de
ser publicados, com a previsão
de mais dois ainda para este
ano. Oportunidades não faltarão para se falar também da tradução sob a direção de L.A.
Hanns, possibilidades de leitura que, em sua diversidade, vão
reavivar o estudo do pensamento da obra de Freud, viga-mestra da psicanálise.
Ambas estão sendo feitas do
alemão e por pessoas que têm a
medida da importância da
obra, da extrema complexidade
das ideias que nela são desenvolvidas. Portanto, podemos
considerar que ambas são traduções confiáveis, o que é uma
fato novo de inestimável importância para quem lê ou estuda Freud em português.
Com a tradução de Paulo César de Souza, parece que não teremos nenhum risco de tropeçar em neologismos ou em artefatos, como palavras marcadas aqui e ali com signos pré-convencionados. Diante das escolhas mais difíceis, Paulo César opta por palavras conhecidas da língua, de maneira que a
prosa flui agradavelmente.
Podemos apostar que enfim
vamos ter a oportunidade de
conhecer, de saborear, o tão falado Freud escritor, este "mestre da prosa alemã" contemplado com o prêmio Göethe em
1930, e que conduz o leitor com
simplicidade, elegância e grande versatilidade de estilo pelos
labirintos de um pensamento
infatigável, irriquieto, impelido
pelo esforço em cercar um objeto de estudo por natureza fugidio; pego numa formulação,
ele já requer novos esforços para ser reencontrado em outras
perspectivas.
"Agieren"
A limitação estará em poder
dar conta das derrapagens, dos
excessos com os quais se depara a psicanálise. Vejamos um
exemplo tirado do artigo "A Dinâmica da Transferência", de
1912, e que se encontra no primeiro volume da série agora
publicada.
No último parágrafo, Freud,
fazendo uma aproximação da
transferência com os sonhos,
destaca a dificuldade em trazer
"os impulsos inconscientes"
para o terreno da lembrança,
ou seja, terreno no qual o paciente pudesse reconhecê-los
na dimensão de sua própria experiência e dos seus desejos, de
sua história. Ao contrário, estes
tendem "a reproduzir-se, de
acordo com a atemporalidade e
a capacidade de alucinação do
inconsciente".
Ele (o paciente) "atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus impulsos inconscientes; ele quer dar
corpo a suas paixões, ...". Em
nota de rodapé, o tradutor indica que "dar corpo" corresponde a "agieren" no texto de
Freud, e fornece algumas opções de tradução usadas em outras línguas, em quase todas a
paixão sendo posta em ação.
Embora a palavra "paixão" já
designe uma condição de grande intensidade, próxima de desencadear atos desmedidos,
Freud neste contexto precisou
dizer que, nesta condição
transferencial, a exacerbação
passional leva a ações, as paixões são agidas, atuadas. A clínica pós-freudiana reconheceu
neste poder de "agieren", por
vezes silencioso, sobre o psiquismo do psicanalista uma
importância decisiva.
Ora, ao traduzir o "agieren"
... suas paixões" por "dar corpo
a elas", o tradutor atenua enormemente a formulação de que
o autor necessita para dar a
medida do que está descrevendo e do desafio técnico que representa e que vai estar no centro de suas preocupações. "Ele
quer dar corpo a suas paixões"
respeita o modo de falar do leitor, mas amortece um excesso
transferencial, que corre o risco de tornar-se incontrolável,
para a qual o psicanalista está
apontando.
Desafios clínicos
O mesmo na escolha de instinto em vez de pulsão para traduzir a palavra "trieb" -na
obra de Freud um conceito essencial. Opção que de novo protege o texto, este não sofre com
um neologismo, mas perde a
especificidade que Freud lhe dá
e que lhe é indispensável: o seu
caráter de compulsão, presente
no verbo compelir (obrigar,
forçar, coagir, constranger, impelir, empurrar).
Mas, isto dito, reconheçamos
que o tradutor fez a sua parte
admiravelmente; cabe aos leitores e estudiosos da obra,
principalmente quando forem
psicanalistas, fazer o trabalho
de leitura e trazer o texto para o
miolo de onde vêm: os desafios
da prática clínica.
LUÍS CARLOS MENEZES é psicanalista e psiquiatra, formado pela Associação Psicanalítica
da França (APF) e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto
Sedes Sapientiae.
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