São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO - LANÇAMENTOS
"Invasor" holandês recupera memória de Nassau


CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

As voltas que a história dá: os holandeses, expulsos do Nordeste em 1654, agora ajudam a recuperar um dos mais importantes documentos sobre o Brasil do século 17 -que trata, justamente, da ocupação holandesa.
O livro ""História dos Feitos Recentemente Praticados Durante Oito Anos no Brasil e Noutras Partes sob o Governo do Ilustríssimo João Maurício, Conde de Nassau", de Gaspar Barleu, está sendo restaurado pela Biblioteca Nacional, no Rio, com recursos do Banco Real, hoje controlado pelo grupo holandês ABN.
O banco está investindo R$ 60 mil na recuperação do livro de 392 páginas, publicado em 1647 em Amsterdã e cujos dois únicos exemplares originais se encontram, em péssimo estado, guardados em um cofre no acervo de livros raros da Biblioteca Nacional.
São edições que sobreviveram ao incêndio da editora holandesa, uma delas colorida e decorada em ouro, e a outra, em preto e branco. Ambas estão escritas em latim e trazem ilustrações de Frans Post, o pintor que Maurício de Nassau trouxe em sua comitiva e que é, possivelmente, o primeiro paisagista europeu a trabalhar nas Américas.
Post é o autor de pelo menos 27 das 55 gravuras do livro, em que retrata cenas da frota holandesa, combates navais, vistas litorâneas e paisagens. Há também mapas e plantas de sítios e fortificações atribuídos a Georg Marcgraf, outro dos membros da comitiva.
Maurício de Nassau foi o primeiro dominador estrangeiro a trazer para o Brasil uma equipe de cientistas e artistas para fazer estudos técnicos sobre o país. Até então, as expedições traziam apenas soldados, comerciantes e padres.
O livro detalha, sob a ótica holandesa, os oito anos em que Nassau esteve no Nordeste, desde que aportou na praia hoje conhecida como Pau Amarelo, ao norte de Olinda (PE), até ser obrigado a retornar, em 1644, pressionado pela burguesia de seu país.
Ele chegou para ser o governador do "Brasil holandês", enviado pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC), depois de consolidada a dominação em Pernambuco, que havia começado em 1630, não sem aguerrida reação da coroa espanhola, então governando Portugal.
Nassau, apontado como "humanista", enviou os índios de volta para as aldeias, concedeu liberdade religiosa, puniu severamente os criminosos e revolucionou a colonização ao ponto de muitos historiadores reconhecerem hoje seu mérito, em detrimento do projeto português e espanhol.
""Como seu interesse era comercial, Nassau quis evitar atritos e, ao que tudo indica, agiu melhor com os índios. Tanto que muitos se aliaram a ele", diz a historiadora e antropóloga Maria Hilda Baqueiro, da Universidade Federal da Bahia.
Ela questiona, inclusive, o conceito de "invasores" para os holandeses. "Quem designa quem de invasor? Na verdade, naquela época tanto portugueses quanto holandeses eram invasores", defende.
Em seu livro, Gaspar Barleu (ou Kaspar Von Baerle) relata a política de "boa vizinhança" que teria querido manter o conde de Nassau, sabedor de que receberia "o mínimo de ódio se mostrasse o máximo de humanidade".
Por outro lado, puniu rigorosamente os delitos -encontrou, segundo Barleu, Pernambuco em franca desordem, com holandeses e nativos entregues ao ócio e à "libidinagem", sob a justificativa de que não havia pecado do lado de baixo do Equador.
Barleu também descreve o povo e a terra brasileiros e os hábitos das muitas nações indígenas locais, algumas antropófagas. ""Com grande tripúdio matam os prisioneiros, tendo-os engordado cuidadosamente por alguns dias, e comem-nos assados em espetos", conta.
O trabalho de restauração, realizado por uma equipe de cinco técnicos, é dificultado pela pigmentação utilizada, que é solúvel. ""Dá até um friozinho na barriga quando fazemos alguma lavagem", diz Ana Montenegro, diretora-executiva da Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional (Sabin).
Boa parte do material utilizado, como os pincéis e o papel, é importado. Muitas páginas estão rasgadas e têm que ser refeitas com a consolidação pelo verso, ou reconstituídas utilizando fragmentos achados no desmonte, como se fosse um grande quebra-cabeças.
Dos dois exemplares da biblioteca, a edição colorida é a que está em pior estado, e é a que mais depende do empenho e criatividade dos restauradores para se aproximar do aspecto original: o material em ouro que orna as ilustrações não tem como ser reposto.
O mesmo se pode dizer do legado arquitetônico deixado pelos holandeses em seu período pernambucano. Sabe-se pelo livro de Barleu que foram construídos dois palácios para Nassau, atribuídos ao irmão de Frans Post, o arquiteto Pieter Post.
Os edifícios foram destruídos ou remodelados, e no século 19 já não se via em Recife e Olinda nenhum prédio holandês - no livro, eles estão lá: o Palácio das Torres, com seu jardim, e a residência de verão, o Palácio da Boa Vista, na "Cidade Maurícia", hoje bairro de São José.
O que resta atualmente do período se resume a algumas pedras guardadas no Museu do Estado, um acervo de pinturas, gravuras e desenhos e um conjunto de azulejos no claustro do convento de Santo Antônio, além de poucos livros como o de Barleu, que até o século 18 era a única fonte iconográfica sobre o Brasil.


Texto Anterior: Guerra nos Bálcãs: "Amo o basquete americano", diz Cucik
Próximo Texto: Trechos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.