São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997.



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LAVOURA ARCAICA
Luiz Fernando Carvalho fala com exclusividade sobre a transformação do complexo romance em filme
'Adaptar Raduan é um chamado', diz diretor

Norma Albano/ Folha Imagem
À esq., o diretor Luiz Fernando Carvalho, com o escritor Raduan Nassar


da Equipe de Articulistas

De passagem por São Paulo, o diretor Luiz Fernando Carvalho disse à Folha que conta com a "emoção", mas sem se esquecer do "imponderável", para transformar o romance "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar, em filme de cinema. A seguir, a entrevista.
(MARILENE FELINTO)

Folha - Não é um projeto ambicioso filmar, para seu primeiro longa, a prosa lírica e densa de "Lavoura Arcaica"?
Luiz Fernando Carvalho -
Para mim ele não soa ambicioso e eu não gosto desse rótulo, mas, se há alguma coisa em que eu acredito bastante, é no lirismo. E todo o meu trabalho, mesmo na televisão, sempre deu certo artisticamente nos momentos de lirismo.
Claro que "Lavoura" é um grande desafio enquanto adaptação, mas eu não posso fugir desse chamado. Meu encontro com o texto de Raduan é um encontro muito especial, que não é fruto de nenhuma condição externa, mas de uma necessidade interior minha. Eu me identifiquei demais com o livro.
Folha - Identificou-se exatamente com o quê?
Carvalho -
O livro lida com sentimentos à flor da pele, com personagens que estão em carne viva. Esse tipo de condição humana, essa exposição à vida, me apaixona. Me traz também uma sensação de retorno a alguma coisa ou alguém.
Essa idéia da volta, do filho pródigo, de fechar um ciclo, essa sensação de retorno é muito forte em mim em qualquer situação.
Além disso, a figura do pai, tão presente no livro, me toca bastante, e o próprio tema da família, do tempo, da terra. Quanto à forma poética, a que você se referiu, eu não olho a prosa poética do livro como uma dificuldade. Ao contrário, ela é uma grande parceira.
Folha - E como você pretende recuperar isso em cinema?
Carvalho -
Por meio do conjunto inerente à linguagem cinematográfica, que inclui imagens, texto, a palavra enquanto imagem, a imagem enquanto palavra, a conjunção com a música, com os tempos, a luz, os atores, tudo isso pode ser poesia também.
E pode ser cinema. Um cinema vital, não um cinema de tese ou racional, de forma alguma. Porque eu acredito que o livro é extremamente emocional.
Não pretendo de forma nenhuma transformar a linguagem numa linguagem naturalistazinha. A forma poética do livro é inseparável da emoção que ele traz. Não tem como eu adaptar para cinema tentando alterar isso.
Folha - Em que pé está o roteiro?
Carvalho -
Eu estou trabalhando agora na versão final do roteiro. Sou apaixonado pela estrutura do livro. Gostaria de conseguir passar para o cinema aquela estrutura, até mesmo a divisão por capítulos.
Acho fundamental, inclusive, não perder a força do personagem principal, o André, como o apresentador ou narrador da história. O mundo interior dele precisa ser traduzido com a força que está no livro. Não quero alterar, quero respeitar.
Se eu quisesse alterar, faria outro filme, pegava outro livro ou escrevia um roteiro. Eu não tenho capacidade de escrever um roteiro. Não acho que eu seja escritor.
Acho inclusive que um dos grandes equívocos do cinema é isso de os diretores acharem que são escritores.
Folha - O Nassar participa?
Carvalho -
Não. Estou adaptando sozinho. Tenho encontros com o Raduan, mas ele não participa escrevendo. São apenas conversas, uma espécie de bate-bola conceitual sobre os personagens, as idéias principais.
São encontros muito importantes, porque funcionam como uma espécie de supervisão para mim, de orientação subjetiva, o que é fundamental. E depois nós faremos uma leitura juntos.
Folha - O elenco do filme já está definido?
Carvalho -
Só tem um ator escolhido até o momento, o Raul Cortez, para fazer o pai. E ele já aceitou o papel. Uma das últimas coisas para mim é o elenco. Eu preciso visualizar bem a atmosfera de cada situação, para daí tirar o rosto do ator que vai fazer. O primeiro que me veio foi o Raul e eu logo fechei com ele.
Folha - Você já adaptou para a TV duas peças de Suassuna. Qual a diferença entre adaptar teatro para TV e romance para cinema?
Carvalho -
Eu sempre fui apaixonado por literatura, que é uma das grandes fontes de inspiração para o meu trabalho. Por exemplo, na primeira fase de "O Rei do Gado", eu estudava os romances italianos, os mesmos em que o próprio Visconti se inspirou para fazer filmes como "O Leopardo", por exemplo. Muitas vezes, para conceber um tipo de atmosfera para um personagem, eu recorro a um romance. Eu falo, olha, esse personagem é o "Madame Bovary". Não é apenas o personagem, é o romance inteiro.
Folha - Mas são diferentes os processos de adaptação?
Carvalho -
Pois é, quanto à dificuldade ou à diferença a que você se refere, o que eu posso dizer é que o livro do Raduan é muito cinematográfico. "Lavoura" e o conto "Menina a Caminho", que é outra paixão minha, são ricos em imagem, narrativa e atmosfera. Eu pretendo dar a mão a Raduan e seguir em frente.
Folha - Por que você resolveu fazer um longa só agora?
Carvalho -
Eu recebia muitos convites para dirigir filmes, mas com nenhum eu sentia uma identificação vital. A idéia de filmar o "Lavoura" foi uma surpresa, um golpe pelas costas, digamos assim.
Eu não estou embalado e nem acredito muito, para ser sincero, nessa idéia de renascimento do cinema. Eu acho que não é tão simples assim.
O renascimento do cinema se faz com os filmes, as obras dos cineastas, independentemente de momento econômico propício ou não. Então eu cheguei ao "Lavoura" não por causa de leis do audiovisual.
Como eu te disse, estou respeitando uma lei interna minha. Eu poderia estar fazendo esse filme daqui a 15 anos, se eu encontrasse esse livro daqui a 15 anos. Mas o livro me chegou agora e eu não estou com pressa de fazê-lo, estou com urgência de fazê-lo.
Folha - Em artigo para a Folha em 95, você questionou a concepção do cinema-indústria. Ainda pensa assim?
Carvalho -
Isso para mim é uma luta. Eu acho que a nossa função deveria ser sempre a de quebrar com a imposição da máquina, da mercadoria, para que o lado humano daquilo que a gente faz venha em primeiro plano.
E a minha luta dentro da televisão nestes anos todos foi exatamente essa. Eu levei para a TV toda uma experiência que eu tinha com pintura, do meu curso de história da arte em arquitetura, da minha vivência pouca em cinema. Misturei tudo.
O que a televisão faz é te dar cinco câmeras de alta qualidade, não sei quantos estúdios, não sei quantos equipamentos maravilhosos.
Se você não humanizar toda essa estrutura, acaba fazendo a linguagem da indústria, exercendo um padrão que não é um padrão do artista, mas de infra-estrutura puramente técnica, e não de estrutura emocional artística.
Folha - Você parece ter uma forte ligação com a cultura nordestina.
Carvalho -
É por causa de minha mãe, que era de Maceió. Eu a perdi quando era muito menino, tinha de 4 para 5 anos.
Pela ausência de fotografias dela e de poucos dados, eu me apoiei na cultura nordestina como um ponto de partida para reconstituir a história e a imagem dela.
Se me diziam que ela lia Graciliano, então eu ia e lia tudo dele, como fiz. Que ela gostava das festas de São João ou que passava férias na praia tal, eu também ia conhecer a praia e a festa.
Aos poucos eu fui formando esse quebra-cabeça da história dela, como quem faz uma pesquisa para uma biografia. Ao mesmo tempo, conhecendo o Nordeste e o país.



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