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CONTARDO CALLIGARIS
O crime de Santa Teresa e o "custo modernidade"
No Rio de Janeiro, nesses
dias, é difícil conversar com
amigos ou com desconhecidos
sem que seja evocado dolorosamente o crime que ocorreu em
Santa Teresa no 26 de abril. A cidade está consternada com o assassinato de Márcia Maria Coelho Lira, torturada e estuprada ao
lado da filha de 13 anos (esta esfaqueada), enquanto o ex-marido e
o filho de 15 escutavam tudo
amarrados no quarto ao lado.
Dos responsáveis, somente Alan
Marques da Costa, 18 anos, está
preso. Marcelo Melo Gonçalves
dos Santos morreu na polícia,
"suicidado". Foi difícil encontrar
coveiros que aceitassem sepultá-lo. Um terceiro permanece foragido.
Com o passar dos dias, a indignação e o nojo parecem confluir
para uma depressão generalizada. O crime demonstraria, num
horror conclusivo, a falência da
sociedade brasileira. Aliás, que
sociedade é essa -argumenta-se-, em que os diferentes só se
encontram num ódio extremo?
Ora, não penso que o crime de
Santa Teresa expresse a falência
do convívio social brasileiro. Sou
mais pessimista: acho que ele é
uma expressão terrificante e
exemplar de propriedades que
são inerentes a toda a modernidade ocidental e que prometem
formas inéditas de violência, sobretudo adolescente -no Brasil
ou alhures. Em suma, o crime de
Santa Teresa não é um "custo
Brasil", mas um "custo modernidade". Por quê?
Idealizamos a rebeldia como a
maneira certa de o indivíduo afirmar-se diante de qualquer autoridade. Para que a autoridade seja automaticamente passível de
crítica radical, decretamos que
ela é, por definição, sustentada
em última instância pelo exercício da força. Em outras palavras,
aos nossos olhos, quem está acima de nós se mantém sempre por
seu braço armado ou musculoso.
Por consequência, a violência
aparece como nossa resposta
mais autêntica: o gesto que manifesta e preserva nossa autonomia.
A idealização da rebeldia violenta tem efeitos preciosos. Ela
faz, por exemplo, que a revolução
seja para nós um direito fundamental. Mas essa mesma idealização torna impossíveis, em nossa cultura, as tarefas de educar e
de ser pai, de ser filho ou de ser filha, pois, se a rebeldia violenta é a
melhor maneira de afirmar nossa
liberdade diante de qualquer autoridade, é inevitável um estado
de guerra entre gerações.
O crime de Santa Teresa foi decidido e concebido por Alan, o pedreiro de 18 anos que havia meses
trabalhava na reforma da casa de
Márcia, uma residência simples.
Márcia confiava em Alan. Segundo os planos, ele continuaria trabalhando na casa (quase "em casa") por bastante tempo ainda.
Além de pagar um salário correto, Márcia oferecia presentes. Sua
cordialidade não devia ser condescendente, mas manifestar
uma real simpatia pelo rapaz.
Talvez não seja errado dizer que,
de uma certa forma, a família
"adotara" o jovem.
O que queria então Alan no 26
de abril? Dinheiro e objetos ele sabia que havia poucos. A resposta
talvez esteja em suas palavras:
chegou esbravejando que ele pertencia ao Comando Vermelho e
que já matara não sei quantos.
Eram mentiras, que evocam, para
qualquer terapeuta, os numerosos adolescentes "confessando"
que se drogam muito mais do que
de fato fazem ou, por exemplo,
que já estiveram presos, quando,
na verdade, eles têm um currículo
de bons moços.
Se muitos adolescentes contam
vantagem desse jeito estranho, é
porque constatam que a violência
é o caminho do reconhecimento.
Fácil entender como: respeitar a
lei é ser conforme -o que é péssimo para uma cultura que promove a singularidade. Ser do mal é a
melhor maneira de se afirmar como uma exceção -um verdadeiro indivíduo.
Provavelmente Márcia, com
sua compreensão ou mesmo seu
afeto, alimentava em Alan a vontade de desastre. Aceitar o cuidado de um adulto implica o risco
de perder a autonomia que a cultura preza. É um pensamento frequente: "Eles me amam como um
bom moço? Agora lhes mostrarei
quem eu sou! Bem diferente daquele que eles gostam que eu seja". Alguns só sonham com isso,
uns ameaçam ou brincam de
transgressão, outros, como Alan,
aproveitam para soltar sua abjeção.
Aposto que Alan adorava se
sentir aceito, incluído, graças às
gentilezas de Márcia. Mas por isso mesmo devia querer demonstrar que ele não era nenhum vassalo. Conseguiu isso, sendo, literalmente, um terror. O estupro
serviu para negar o lugar especial
-quase materno- que Márcia
devia ocupar para ele. Maneira
de dizer: "Ninguém me nina, só
conheço corpos quaisquer".
Agora, se você achar que nossa
cultura não idealiza rebeldia e
violência a ponto de tornar o horror de Santa Teresa exemplarmente moderno, assista a "Laranja Mecânica", de Kubrick. Espontaneamente, o espectador é
levado a considerar o humilhante
condicionamento imposto ao jovem delinquente do filme como
uma metáfora apropriada de
qualquer educação. De repente, a
violência monstruosa da gangue
se afirma como símbolo positivo
de liberdade.
Cuidado: Kubrick, no caso, não
inventou os ideais de nossa cultura. Apenas revelou.
E-mail : ccalligari@uol.com.br
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