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CARLOS HEITOR CONY
Por que o melado lambuza quem o come
A onda feminista aboliu, entre outros conceitos e preconceitos, a expressão ""mulher da
vida" para designar as prostitutas. A expressão ""mulher pública"
significava mais ou menos a mesma coisa e também foi devidamente eliminada do uso comum.
Contudo o equivalente masculino (""homem público") continua
em vigor para nomear aqueles
que, de uma forma ou de outra,
exercem função pública ou são
obrigados a atuar em setores de
grande visibilidade, como política, finanças, artes em geral, esportes etc.
Nenhuma aproximação deve
ser feita entre prostituição e atividade pública, mas volta e meia
acontecem coisas que podem ser
não idênticas, mas análogas. Sem
querer atacar nem defender ninguém, tomo como base a última
bomba que estourou na corrida
presidencial, envolvendo o candidato oficial que recebeu o petardo
de seus próprios correligionários,
seus colegas de ministério até há
bem pouco, e, aparentemente, políticos afinados com o eixo do poder que passa pelo presidente da
República, ao qual serviram durante algum tempo, em espírito e
em prática de equipe.
Faço um parêntesis para lembrar o caso de um amigo meu,
professor de nomeada, com cursos no exterior e brilhante currículo no magistério particular,
ainda moço, conhecido nos meios
acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos, que recebeu o convite
para ser secretário de Educação
de um importante Estado brasileiro.
Nunca se filiara a partido algum, mas de tal forma havia adquirido prestígio de educador que
o seu nome figurou em todas as
listas dos candidatos àquele cargo. Realmente, foi convocado pelo
governador eleito, em fase de formação de secretariado. O convite
foi feito naquela base -preciso
do senhor, sem o senhor não haverá salvação, seu nome dará gabarito ao meu governo etc. etc. O
meu amigo ouviu e pediu tempo
para pensar. O governador deu-lhe o prazo de 24 horas para receber uma resposta.
Chegando em casa, escreveu ao
governador agradecendo a lembrança, mas recusando a nomeação por motivo de falta de tempo,
frequentes compromissos no exterior e, de quebra, problemas de
saúde com um membro de sua família.
Tudo cascata. Ao telefone, ele
me contou por que recusava o
convite: ""Vou assinar milhares de
cheques que botarão na minha
mesa, milhares de portarias, avisos, memorandos, o diabo, terei
consciência do que estou assinando em pouquíssimos casos, a
maioria, quase a totalidade, será
de processos, rotinas e questões
que não saberei avaliar. Amanhã
ou depois, estoura um escândalo
que envolve o meu nome ou a minha administração e, por mais
inocente que eu esteja, sempre sobrará alguma coisa para o meu
lado".
O raciocínio dele é o mesmo de
muita gente capaz para a função
pública. Mas de tal forma a corrupção se instalou no mecanismo
do Estado que somente um louco,
um ambicioso ou um abnegado
patriota podem rejubilar-se com
um convite para salvar a nação
ou a lavoura pública.
Temos dois casos recentes que
dão o que pensar. O da ex-governadora do Maranhão e o do ex-ministro José Serra, ambos na lista de presidenciáveis e vítimas de
grampos, investigações complicadas e suspeitas, enfim, dois cavalos que foram para a chuva e naturalmente ficaram molhados.
O caso de Roseana parece encerrado. Ela não é mais candidata presidencial e terá tempo e elementos para provar sua inocência na questão da Sudam. O caso
de Serra é mais antigo, envolve jogadas em que rolou dinheiro
muito mais substancioso e já destinado a garantir abertamente
um reinado tucano de 20 anos.
Seu comprometimento pessoal
com o pires que passou entre os
pretendentes às privatizações não
é claro, mas, de alguma forma, ele
fez parte do escalão avançado
que, desde 1994, com a chegada
de FHC ao Planalto, tentou arrumar o país de uma forma que desse para arrumar simultaneamente alguns interesses pessoais.
Será difícil provar milimetricamente a culpa ou a inocência de
Serra. Quanto mais não seja, pelo
fato de ser ele o beneficiário da
vez para ocupar o trono dos tucanos, acrescentando mais quatro
anos aos oito já cumpridos por
seu antecessor.
O Brasil é um país jovem, não é
como a Alemanha, onde os loucos
pensam em ""reichs" de mil anos.
Mais modesto, aqui por nossas
plagas um ""reich" de 20 anos, como prometeu o finado Sérgio
Motta, dá para o gasto e para satisfazer a gula e a vaidade dos tucanos -pássaros de plumagem
sortida e extravagante.
O mais curioso nisso tudo é que,
desde o início, quando se fizeram
as privatizações, sabia-se que havia dinheiro rolando por fora, aos
borbotões, para lubrificar a pretensão dos grupos que se habilitavam ao controle das estatais.
Evidente que muitas delas eram
mal administradas, outras nem
deveriam existir. Mas o filão que
elas representavam para garantir
verba suficiente para os tais 20
anos era o mais apetitoso do mercado. Tão apetitoso como o melado, que lambuza quem o come.
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