São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Por que o melado lambuza quem o come

A onda feminista aboliu, entre outros conceitos e preconceitos, a expressão ""mulher da vida" para designar as prostitutas. A expressão ""mulher pública" significava mais ou menos a mesma coisa e também foi devidamente eliminada do uso comum.
Contudo o equivalente masculino (""homem público") continua em vigor para nomear aqueles que, de uma forma ou de outra, exercem função pública ou são obrigados a atuar em setores de grande visibilidade, como política, finanças, artes em geral, esportes etc.
Nenhuma aproximação deve ser feita entre prostituição e atividade pública, mas volta e meia acontecem coisas que podem ser não idênticas, mas análogas. Sem querer atacar nem defender ninguém, tomo como base a última bomba que estourou na corrida presidencial, envolvendo o candidato oficial que recebeu o petardo de seus próprios correligionários, seus colegas de ministério até há bem pouco, e, aparentemente, políticos afinados com o eixo do poder que passa pelo presidente da República, ao qual serviram durante algum tempo, em espírito e em prática de equipe.
Faço um parêntesis para lembrar o caso de um amigo meu, professor de nomeada, com cursos no exterior e brilhante currículo no magistério particular, ainda moço, conhecido nos meios acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos, que recebeu o convite para ser secretário de Educação de um importante Estado brasileiro.
Nunca se filiara a partido algum, mas de tal forma havia adquirido prestígio de educador que o seu nome figurou em todas as listas dos candidatos àquele cargo. Realmente, foi convocado pelo governador eleito, em fase de formação de secretariado. O convite foi feito naquela base -preciso do senhor, sem o senhor não haverá salvação, seu nome dará gabarito ao meu governo etc. etc. O meu amigo ouviu e pediu tempo para pensar. O governador deu-lhe o prazo de 24 horas para receber uma resposta.
Chegando em casa, escreveu ao governador agradecendo a lembrança, mas recusando a nomeação por motivo de falta de tempo, frequentes compromissos no exterior e, de quebra, problemas de saúde com um membro de sua família.
Tudo cascata. Ao telefone, ele me contou por que recusava o convite: ""Vou assinar milhares de cheques que botarão na minha mesa, milhares de portarias, avisos, memorandos, o diabo, terei consciência do que estou assinando em pouquíssimos casos, a maioria, quase a totalidade, será de processos, rotinas e questões que não saberei avaliar. Amanhã ou depois, estoura um escândalo que envolve o meu nome ou a minha administração e, por mais inocente que eu esteja, sempre sobrará alguma coisa para o meu lado".
O raciocínio dele é o mesmo de muita gente capaz para a função pública. Mas de tal forma a corrupção se instalou no mecanismo do Estado que somente um louco, um ambicioso ou um abnegado patriota podem rejubilar-se com um convite para salvar a nação ou a lavoura pública.
Temos dois casos recentes que dão o que pensar. O da ex-governadora do Maranhão e o do ex-ministro José Serra, ambos na lista de presidenciáveis e vítimas de grampos, investigações complicadas e suspeitas, enfim, dois cavalos que foram para a chuva e naturalmente ficaram molhados.
O caso de Roseana parece encerrado. Ela não é mais candidata presidencial e terá tempo e elementos para provar sua inocência na questão da Sudam. O caso de Serra é mais antigo, envolve jogadas em que rolou dinheiro muito mais substancioso e já destinado a garantir abertamente um reinado tucano de 20 anos.
Seu comprometimento pessoal com o pires que passou entre os pretendentes às privatizações não é claro, mas, de alguma forma, ele fez parte do escalão avançado que, desde 1994, com a chegada de FHC ao Planalto, tentou arrumar o país de uma forma que desse para arrumar simultaneamente alguns interesses pessoais.
Será difícil provar milimetricamente a culpa ou a inocência de Serra. Quanto mais não seja, pelo fato de ser ele o beneficiário da vez para ocupar o trono dos tucanos, acrescentando mais quatro anos aos oito já cumpridos por seu antecessor.
O Brasil é um país jovem, não é como a Alemanha, onde os loucos pensam em ""reichs" de mil anos. Mais modesto, aqui por nossas plagas um ""reich" de 20 anos, como prometeu o finado Sérgio Motta, dá para o gasto e para satisfazer a gula e a vaidade dos tucanos -pássaros de plumagem sortida e extravagante.
O mais curioso nisso tudo é que, desde o início, quando se fizeram as privatizações, sabia-se que havia dinheiro rolando por fora, aos borbotões, para lubrificar a pretensão dos grupos que se habilitavam ao controle das estatais.
Evidente que muitas delas eram mal administradas, outras nem deveriam existir. Mas o filão que elas representavam para garantir verba suficiente para os tais 20 anos era o mais apetitoso do mercado. Tão apetitoso como o melado, que lambuza quem o come.



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