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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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COMENTÁRIO

"Capital com escravidão" explica idéias de FHC

VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Qual o interesse de reeditar e ler um livro que estreou há 41 anos, uma monografia sobre o escravismo no Rio Grande do Sul, metodologicamente tão complexa e algo datada como "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", de Fernando Henrique Cardoso?
"Capitalismo e Escravidão" é o livro em que FHC lançou a base teórica do que viriam ser seus estudos sobre dependência e desenvolvimento. Isto é, uma das explicações mais inteligentes da condição dependente do país e dos nexos de interesses internos e externos que condicionam a situação periférica do Brasil. FHC contribuiu para mostrar e sofisticar a idéia de que a "modernização" conduzida pelo que se chamava de burguesia brasileira é conservadora e costuma se limitar à esfera econômica. Não soa atual?
O trabalho a princípio fazia parte de um projeto de pesquisa do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) sobre o preconceito racial no Brasil. Tornou-se uma tese de doutoramento muito mais ambiciosa do jovem FHC.
O livro era uma história da economia da pecuária baseada no trabalho escravo, uma interpretação da formação da elite gaúcha do século 19 e da condição degradada do negro liberto e, importante, uma tentativa de explicar o caráter específico da história brasileira, que tornava compatíveis trabalho escravo e capitalismo.
"O principal resultado da monografia consistiu em mostrar concretamente que a sociedade escravocrata constitui-se como uma tentativa de intensificar a produção visando a realização de lucros no mercado. A única forma historicamente possível de alcançar esse objetivo estava na intensificação da escravidão", escreveu FHC. Sem a perspectiva da história das idéias no Brasil, tal conclusão soa quase banal. Mas FHC, inspirado pelas idéias de seu professor Florestan Fernandes, ajudou a desmontar clichês primitivos sobre a história do Brasil.
FHC fez parte de uma das primeiras gerações a realizar o trabalho empírico pesado necessário para fazer história e sociologia. Atrás dessa geração, não havia muito mais que o ensaísmo brilhante e culto das interpretações do Brasil, história tradicional e o marxismo primitivo e obtuso do Partido Comunista Brasileiro.
O debate intelectual de então era fortemente marcado pela política. Para simplificar, à direita dizia-se que o Brasil do século 19 era patriarcal; para a esquerda, o país vivera e em parte vivia ainda uma espécie de feudalismo, que precisava ser superado por uma revolução burguesa, numa versão serial e escolar da história européia escrita por Marx. Havia ainda a interpretação dualista: o latifúndio colonial era internamente feudal e externamente capitalista. Diante de FHC, havia ainda o problema de como confrontar teorias elaboradas em outras paragens (Marx, Weber e funcionalismo) com a realidade brasileira.
"Capitalismo e Escravidão" tornou-se uma eclética e curiosa mistura teórica que recorria a pedaços de pensamento europeu para mostrar que o Brasil não era uma anomalia histórica sem medula nem uma versão primitiva porque incompleta da história com "h" maiúsculo, a européia.
FHC e colegas de geração mostraram que o país não era capitalista "puro", menos ainda feudal, mas uma particularidade do capitalismo mercantil-escravista, incluído no sistema capitalista mundial e sempre redefinido pela história desse sistema, por meio das articulações do capital e da política do centro e da periferia, em situação de dependência estrutural (em resumo e em germe, a dita "teoria da dependência").
Na versão quase sempre otimista que FHC deu à sua compreensão da dependência, sempre houve a chance de ajustar o desenvolvimento do Brasil a possibilidades determinadas no plano internacional, no centro econômico do planeta -a dependência seria estrutural, mas não implicaria sempre em subordinação total e "atraso". Na política estariam oportunidades para dar sentido menos deletério à dependência. Política que, porém, sob FHC, foi mais uma vez subjugada pelo ímpeto da modernização conservadora.


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